Duas Obras Admiráveis
1. Estava ali, um pouco esquecido entre a Bibliografia Açoriana, quando o
reencontrei não muito longe de Os
Hebraicos na Ilha Terceira de Pedro de Merelim (Angra do Heroísmo, 1966;
reeditado em 1995), a que fiz referência em Crónica anterior (*) e a propósito, que
retomo hoje, do brilho e projecção com que foi recentemente inaugurada a
histórica Sinagoga de Ponta Delgada – Sahar Hassamain (“Porta dos
Céus”) –, coroando-se assim de nobres aspirações e assegurando-se uma acrescida
preservação da memória religiosa, socioeconómica e cultural do Povo Judeu nos
Açores:
–
Refiro-me ao belíssimo livro Sinagoga
Sahar Hassamain de Ponta Delgada, notável projecto e obra de História, Recuperação e Conservação da
autoria e responsabilidade de José de Almeida Mello (então já rigoroso,
promissor e premonitório – e realmente tão profético e visionário no seu
aduzido trabalho – quanto dele os luminosos frutos testemunharam, agora a maior
evidência, a riqueza das suas reais, comprovadas e imensas potencialidades,
aliás exemplarmente reveladas a quando da mundialmente divulgada abertura desta
Sinagoga, e da crescente e interessada vaga de visitantes que começaram e
continuarão por certo a admirar tão assinalável herança da presença hebraica
nos Açores (S. Miguel, Terceira, Graciosa e S. Jorge)!
2. Lançada em 2009 – numa mecenática edição da Publiçor (com os
conhecidos empenhos beneméritos do seu administrador José Ernesto Resendes); muito
bem impressa na Nova Gráfica; com excelentes e sugestivas Fotografias de José
António Rodrigues (entre as quais as que ilustram este texto), e com esmerado
Design Gráfico de Jaime Serra – esta Sinagoga
Sahar Hassamain de Ponta Delgada (graciosamente oferecida à mesma entidade
e aos seus curadores para apoio aos desígnios do seu projecto e subsequente
divulgação promocional), contou com um Prefácio
do nosso estimado e saudoso amigo Dr. Alberto Sampaio da Nóvoa (ex-presidente
do Supremo Tribunal Administrativo e Ministro da República para a Região
Autónoma dos Açores entre 1997 e 2003), onde justamente foi logo salientado o
seu carácter de “obra plena de oportunidade, não só por estar em causa uma
comunidade judaica, cujo legado cultural e religioso importa preservar e
divulgar, mas também porque a recuperação da Sinagoga irá contribuir, sem
dúvida, para o enriquecimento do valioso património cultural da cidade de Ponta
Delgada”. E assim admiravelmente aconteceu por estes dias!
– Fundado em 1836 por Abraão Bensaúde, mas abandonado e degradado durante bastante tempo, aquele Templo e moradia de Rabino é o mais antigo do género em Portugal, tendo sido construído por judeus vindos estabelecidos ou regressados ao nosso Arquipélago no Século XIX, na sequência de expatriações e demandas que remontam ao Século XV.
3. Este livro, para além do Prefácio referido e da Introdução (na qual Almeida Mello nomeia
e agradece aos seus diligentes Colaboradores) explicita depois métodos de investigação,
processo de recolha, conteúdo, significado e historial dos materiais e objectos
ali inventariados, abordando os seguintes temas e revelando documentos:
– Restauro e conservação na Europa;
enquadramento espacial; resenha histórica da presença hebraica em Portugal e
nos Açores; a Sinagoga e o seu lado humano; descrição do edifício e da
Sinagoga, e dos seus (então) deteriorados estados; a sala de Culto; “inimigos vivos”
(constatados aos milhares nas velhas ruínas: térmitas, ratos, ninhos, baratas,
traças...) que povoavam aquele corrompido lugar; espólios (v.g. Toras e outros objectos de culto; um
quadro dos fundadores da Sinagoga; candeeiros de tecto; a cadeira de
Circuncisão; caixa de esmolas; papéis hebraicos e livros de culto); Comissões
de recuperação e salvaguarda; a Sinagoga na Imprensa; Projecto de restauro e
conservação; objectivos pretendidos e intervenções na Sinagoga. Após as
conclusões, seguem-se Anexos (levantamento arquitectónico, plantas e escrituras
várias), Bibliografia e uma Nota Biográfica do Dr. José de Almeida Mello (principal,
competente e incansável coordenador executivo deste projecto, como já
tive oportunidade de gratamente assinalar).
4. Finalmente, esta obra – para
além do seu evidente valor intrínseco como repertório documental, inventário
patrimonial e verdadeiro manifesto em prol da recuperação daquele paradigmático
monumento comunitário e símbolo religioso, sociohistórico e cultural dos Açores
e do Povo de Israel –, vale também como a face primeira de um projecto cívico e de resistência memorial (devidamente suportados por diversas e
irmandas instituições regionais, nacionais, hebraicas e norte-americanas),
tanto mais justificados todos, retroactiva e prospectivamente, quanto a obra feita e a palavra cumprida – ao
contrário do que teria sido uma cedência comodista, cobarde ou apenas
preguiçosa, quase como a de Jefté, segundo o Talmude lido por Elie Wiesel... –,
foram um verdadeiro protesto cívico, teórico e prático, contra a indiferença
e contra desleixos, ignorâncias e recorrentes ignomínias
civilizacionais...
De resto,
sem chegar a ter de relembrar nesta ocasião, com Gershom Scholem e outros, todo
o insuspeitado alcance intelectual –
desde História, Literatura, Arte e Filosofia das Religiões, até ao Pensamento
Judaico e às suas marcas críticas na Cultura Europeia, e desde a Diáspora ao
Sionismo, ao anti-Semitismo e ao Holocausto (Shoah)...–, desta tão digna
e dignificante restauração patrimonial, religiosa e cultural do Judaísmo e
das suas múltiplas manifestações e heranças – para além, evidentemente, de vertentes mais pragmáticas e estratégicas (desde a turística à
arquitectónico-urbana e à político-cultural...) –, bem merece ser retido,
também aqui, aquilo que Golda Meir, em Maio 1923, testemunhou e que Almeida
Mello, em boa hora e sob reavivada estrela, no seu excepcional livro, emblematicamente
transcreveu:
– “Lembro-me de ter
percorrido a bonita cidadezinha (Ponta Delgada), apreciado o clima doce e a
adorável e invulgar paisagem. Um aspecto curioso da nossa paragem foi que
descobrimos uma pequena comunidade judaica sefardi [sefardita] (umas trinta pessoas ao todo) que era extremamente
cumpridora. O rabi tinha morrido vários anos antes (...)”.
Assim, e também por isso, é
que é tão admirável, respeitável e promissor este reavido legado de gerações – esperanças e lamentos vindos do fundo
enigmático dos tempos –, qual kipá
levada de volta a casa, ou retomado tálit
para a meditação e a humilde e longa espera do Messias.
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(*) Cf. "As Heranças Hebraicas", em OS SINAIS DA ESCRITA:
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(*) Cf. "As Heranças Hebraicas", em OS SINAIS DA ESCRITA:
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Publicado em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 09.05.2015):
RTP-Açores:
e Azores Digital:
http://www.azoresdigital.com/colunistas/ver.php?id=2889:
Outra versão: "Um Projecto Exemplar",
em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 09.05.2015):