segunda-feira, outubro 17, 2016


Do Nobel da Literatura
às Poéticas de Dylan


A atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Bob Dylan terá constituído relativa mas generalizada surpresa, tanto pelo perfil do premiado como pelo carácter da obra reconhecida e anunciada como “tendo criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção Americana” (“for having created new poetic expressions within the great American song tradition”).



– Cantor e poeta nascido em 1941, Robert Allen Zimmerman distinguiu-se como guitarrista em bandas liceais de rock’n’roll na sua terra natal (Tuluth, Minnesota), vindo depois a ser atraído pela poesia neo-romântica, modernista e surrealista de Dylan Thomas (1914-1953) – daí o seu nome artístico –, e pela folk e country music de estro multi-étnico, popular e social de Woody Guthrie (1912 -1967), referências que manteve ao longo da sua longa e notável carreira de compositor, escritor e intérprete.




Como seria de esperar, e apesar de ser rica a lista de romancistas, poetas e ficcionistas alternativamente nomeáveis (ou merecidamente distinguíveis em outros géneros, estilos, línguas e países), em todo o mundo não se fizeram aguardar reacções e comentários (alguns reservados ou discordantes, porém na maioria concordantes e laudatórios), não faltando músicos consagrados (Leonard Cohen, por exemplo), escritores (Joyce Carol Oates ou S. Rushdie) e credenciados académicos que complementaram as asserções de Sara Danius, secretária permanente da Academia Sueca, ao defender a filiação de Dylan não só em tradições anglo-saxónicas (Milton e Blake) quanto ainda e mais remotamente numa paradigmática conjugação de escritas e oralidades literárias, artísticas e musicais que remontariam a Homero e Safo (evocados ali para defesa de tese).





E apenas de passagem recordando aqui, entre outros que tem vindo a ser divulgados:

  o abalizado testemunho de Carlos Reis: “um desafio: tratemos de ler ou reler a poesia de Bob Dylan enquanto poesia e talvez tenhamos algumas surpresas”; 

o depoimento de Miguel Esteves Cardoso: “A obra de Dylan – que é caoticamente desigual, havendo coisas terríveis ao lado de obras-primas – é uma gloriosa colecção de todas as tradições literárias da humanidade, desde os trovadores aos cantores de blues, desde os contos de fada às orações”; 

o belo texto de Eduardo Cintra Torres, escrito em 2005, sobre Scorcese e Dylan: “O jovem artista como Ulisses sem Ítaca. (...) As raízes não estavam lá, estavam na viagem de regresso, na viagem para sempre, o acto da criação: (...) Eterna odisseia. À procura de si. Sem direcção definida. À procura de saber. ‘Os verdadeiros viajantes são os que partem por partir’, escreveu Baudelaire (...). O viajante nunca se encontra. Procura sempre. (...) No direction home, like a rolling stone”; 

e, enfim, aquela Crónica de Alexandre O’Neill, agora retomada de “A Capital” (1.1.1974) pelo jornal i e na qual, sobre o “fanhoso” do Minnesota, se escrevia: “As massas verbais que, sem ornatos, debita dão conta de muita coisa bela, grande, divertida ou terrível, mas a força comunicante do trovador está, principalmente, no partido que ele tira da monotonia, repetição e progressão (...) de um texto maravilhosamente aliado à música. Este é um caminho de voluntária pobreza”], 

– registando-se por fim que em Portugal também não passou inobservada a atribuição deste Nobel da Literatura, tendo sido bastante sugestivas as apreciações aos seus múltiplos significados, apesar da conhecida e constatada ausência, entre nós, de vivências directas e de abordagens aprofundadas ou mais sistemáticas sobre a plurifacetada personalidade de Bob Dylan e sobre a sua heterogénea obra, desde os anos 60 do século passado até hoje, nos múltiplos contextos sociais, ideográficos, estéticos e expressivos da génese, evolução e influência das memoráveis e inspiradoras criações desse controverso ícone (contra)cultural de The Times They Are A-Changin’, moderno trovador já laureado em 2012 com a “Medalha da Liberdade” dos USA, pelo cessante presidente Barack Obama!



De resto, com este Prémio, Bob Dylan enfileira na galeria de ilustres Escritores anteriormente premiados, ficando assim na companhia de nomes universalmente tão distintos e consagrados como o nosso José Saramago, Modiano, Vargas Llosa, Le Clézio, Doris Lessing, Pamuk, Coetzee, Günter Grass, Toni Morrison, Octávio Paz, William Golding, García Marquez, Canetti, Neruda, Beckett, Steinbeck, Camus, Hemingway, Churchill, Mauriac, Lagerkvist, Faulkner, T. S. Elliot, Gide, Hesse, Thomas Mann, Bergson, Romain Rolland, Tagore, etc., etc., e de... Jean-Paul Sartre, claro, que, em 1964, não aceitou receber o mesmo Nobel da Literatura que lhe fora então destinado, enviando depois para a Academia Sueca uma carta de justificação pela sua famosa recusa, – cujo teor valerá a pena hoje reler, aliás enquanto se aguarda a reacção de Dylan ao certamente inesperado e formal reconhecimento e nobelização formal das suas poéticas...


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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 18.10.2016):






























e RTP-Açores.
Uma primeira versão deste texto foi publicada em 15.10.2016. 
Ver aqui: