domingo, dezembro 15, 2019



ENTREVISTA AO JORNAL "DIÁRIO INSULAR"
(Angra do Heroísmo, 14 de dezembro de 2019)

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Centenário de Sophia:
Um Olhar luminoso
em figuração Poética


O Centenário do Nascimento de Sophia de Mello Breyner (1919-2004), está a ser comemorado em todo o País. Que sentido e alcance vê nestas evocações?


Vejo todo o sentido e mérito nestas iniciativas – que oxalá se diversifiquem e tenham continuidade de divulgação e interpretação sociocultural, escolar, académica, literária e artística, para aprimorado, amoroso e rigoroso tratamento multidisciplinar da grande beleza poética e sentido existencial da sua obra –, tratando-se de uma efeméride apropriada e propiciadora de merecida evocação multimodal de uma das figuras e obras mais notáveis e cimeiras da Literatura, da Cultura e da Cidadania em Portugal no século XX.

De resto, uma consulta aos programas e eventos comemorativos dará bem conta do alcance, real ou potencial, da diversidade desejável e da salutar complementaridade compreensiva e integradora de todos esses projectos, com entendimento crítico, solidário e construtivo, a desenvolver sob o escorreito signo de Sophia e da sua luminosa e iluminada visão das coisas, das realidades e dos seres nossos circundantes, naquela justeza e rectidão das palavras, imagens e valores que foram e são próprios do seu timbre puro e pendor visionário, e do seu olhar matinal, no autêntico exercício poético-sapiencial e metamórfico, simultaneamente silente e verbal, do seu espírito…

Numa Conferência proferida em Ponta Delgada, referiu-se à Exposição sobre Sophia, que está patente na Biblioteca Pública de Angra…

Sim! Entendi de facto dever elogiar esta Exposição que é bem merecedora de uma visita, pelo tema e pela diligente forma da sua instalação.

– Tendo perfilhado o título de um dos livros de Sophia (O Nome das Coisas), logo pela apresentação das peças bibliográficas e documentais, passando pela respectiva montagem e suportes visuais e didácticos para visualizações alusivas, esta é uma Exposição atraente e sugestiva. Além do mais, os documentos apresentados foram bem articulados com a instalação in loco de uma útil e funcional plataforma informática para acesso rápido a várias bases e Páginas Web correlativas.

Finalmente, neste âmbito (onde se entendeu acentuar a vertente sociopolítica e cívica de Sophia) merecem relevo qualitativo as imagens e textos trabalhados no formoso Catálogo da Exposição, bem adequado à revelação de importantes facetas da escritora.




Professor que foi em diversos níveis do Ensino, e como ensaísta e académico, é conhecida a sua já antiga e recorrente atenção à criação literária e ao pensamento de Sophia. Como chegou ao conhecimento da sua obra e que género de estudos interpretativos foi desenvolvendo, e ainda hoje proporia, sobre os mesmos?

Os primeiros textos e iniciações à leitura que recebi foram-me tradicional e maternalmente ditos, ensinados e con-vividos em família, na nossa casa da Praia da Vitória, como mensagens verbais de alta densidade poética, bela estilização retórica e nobre timbre moral, através de Contos, Narrativas Ficcionais fabulosas e Poesias, muito antes de toda a grande Prosa das literaturas e de outros sucessivos mundos e memoriais do Imaginário, que se foram tornando sempre mais amplos. Mas todas essas leituras, que a formação escolar e universitária consolidou e fez reviisitar, só ganhariam realmente outra e maior dimensão e complementaridades de sentido e fundamentação com a Filosofia…

Quando ensinei Língua Portuguesa, antes de leccionar Filosofia na Universidade, sempre procurei trabalhar com os meus alunos sobre textos de Sophia, em Poesia e Prosa:

– Recordo nomeadamente as Poéticas ou o “Caminho da Manhã” (do Livro Sexto). Porém, foi sobretudo Contos Exemplares a obra mais lida, programática e inspiradoramente aplicada por mim, não só na Literatura e na Cultura Portuguesa, mas depois também, mais tarde, na Filosofia, mormente na Ética e na Ontologia…




Contudo a obra de Sophia é muitíssimo exigente, de todos os pontos de vista – complexa conquanto límpida e quase translúcida; ascética mas interiormente vibrátil; enfim, na formulação da sua autora, tanto manuelina como apolínea...

– E talvez por isso Eduardo Prado Coelho e outros puderam constatar ter sido a mesma conjunturalmente ladeada (ou aligeiradamente esquecida por reduções várias...), superficialmente transmitida, treslida ou mal ensinada, numa espécie de cómoda e preguiçosa neutralidade crítica, didáctica, espiritual e ética (quando não até com incompetentes e inadequadas metodologias, desvirtualizantes e desvirtuadas pedagogias ou desmotivadora inspiração redutora…).



Mais especificamente, voltando aos programas e aulas de Filosofia e de Cultura Portuguesa, que leituras temáticas, abordagens críticas e propostas compreensivas procurou suscitar?

Como tão profundamente foi meditado por D. António Ferreira Gomes no seu erudito e profundo Prefácio a Contos Exemplares, esta obra constitui e revela uma densa e autêntica reflexão filosófica, ética e metafísica sobre a existência e a condição humanas, as situações-limite da vida, da morte, do sofrimento, da problemática e do mistério da Finitude e da Transcendência, num discurso poético-fenomenológico, metafórico e simbólico, que não só intencionalmente configura e revela uma Ética, uma Metafísica e mesmo uma Teologia, quanto suscita e mais potencia ricas e diversificadas hermenêuticas, análogas ou próximas, mesmo quando contrapostas, por exemplo, às desenvolvidas por Heidegger, Ricoeur, Lévinas, Nietzche, Marx, Adorno e Horkheimer, Metz, etc. Mas o mesmo também pôde ser considerado a propósito de Pessoa, Rilke, Dante, Claudel, ou  Homero (tutelar ícone da particular  modelação mítica, estética e geográfica da Grécia, que Sophia faz matizada e categorialmente brotar de deslumbrantes modos).



– Evidentemente, o mesmo ou mais se diga no que concerne à Filosofia Grega, um dos berços do Ocidente, ora mediterrânica, ora atlântica ora insularmente embalado em deslumbradas viagens, rotas e demandas náuticas, terrestres e celestes), com os seus Mitos e Clássicos autores da nossa Cultura e Civilização, conquanto, atenda-se, em diálogo crucial, umas vezes messiânico ou utópico, outras crucificante, doloroso, interminável e irrecusável com os paradigmáticos exílios e diásporas da Cultura Judaica e com os estigmas redentores do Cristianismo.


Tudo isto está presente, também, na obra, na vida e no pensamento de Sophia, desenhando um quadro ou fundo essencialmente conatural à Filosofia e à Literatura universais, mas ainda à nossa Portugalidade destinal, saudosa, angustiada e lírica.

Sophia foi uma grande activista cívica. Que recordações guarda dessa sua vertente, também política, antes e depois do 25 de Abril?

Quero aqui, quanto a isto, recordar hoje apenas a sua actuação e atribulações como opositora do Regime anterior ao 25 de Abril e a sua adesão aos pronunciamentos da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, cujos documentos (recebidos através do nosso saudoso amigo Padre Manuel António Pimentel) fazíamos divulgar, clandestinamente, na Terceira… Foi assim com indisfarçável emoção que vi assim um desses documentos memoráveis reproduzido na Exposição de Angra!

Quanto ao papel de Sophia – que esteve na Terceira nas primeiras lides democráticas, anti-totalitárias e eleitorais do PS de outrora... –, fica prometida a abordagem para outro ensejo. Todavia, Sophia percorreu e marcou alguns desses (bem lembrados...) caminhos comuns, desencontros e conflitos, mas sem mácula nem desprimor, sem ressentimento nem desvirtuamento de si, do seu passado e da sua obra!



– Ainda por tudo isso, é que ela permanece um exemplo de dignidade intelectual e de sabedoria, para comovida e irmanada procura iluminadora das palavras e das obras, entre a Justiça e a Esperança transformadorastransfiguradoras do Mundo, dos Valores e das Linguagens.
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Entrevista publicada no jornal "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 14.12.2019).
O Desenho (Inédito. 2019) de Sophia é da autoria de Emanuel Félix e foi propositadamente feito, a meu pedido, para ilustração deste texto.