Memórias e Evocações
do Prof. Adriano Moreira
__________________
Em 6 de Setembro de 2012, quando
o Prof. Adriano Moreira comemorava o seu nonagésimo aniversário, efeméride
justamente lembrada em diversos círculos intelectuais, académicos e mediáticos,
com especial destaque no Jornal de Letras
e na RTP1 (com as Entrevistas feitas por Soromenho Marques e Fátima Campos
Ferreira), no Público (com a
publicação de um belo texto de Isabel Moreira sobre o seu pai) e nas redes
sociais (v.g. no Facebook, onde vimos acrescidamente partilhados, com outros
reconhecidos amigos, depoimentos e apreços pela sua exemplar figura).
Por mim – que tive, há mais de
trinta anos, a feliz possibilidade de conhecer Adriano Moreira e de poder
contar desde então com a generosidade honrosa da sua Amizade pessoal e da sua
colaboração institucional –, não podia agora – nesta triste data da sua morte –
deixar passar mais uma significativa e
sentida ocasião sem, também aqui e a partir destas insulares paragens, tornar a
evocar a sua longa Vida e a sua vasta e rica Obra, mesmo que apenas na
circunstância de um breve e localizado testemunho, cujo texto retoma hoje e em
síntese compósita, à letra e na vigência ainda do essencial de anteriores
escritos, algumas das memórias e afectos que dele guardo.
– Não me é fácil todavia, num
sucinto depoimento como este, elencar tantas ou todas as ocasiões em que pude
beneficiar com os seus diálogos e partilhar da sua franca companhia, amizade,
conselho e estima, mas devo salientar as muitas oportunidades em que, bem de
perto, colhi bons frutos das suas reflexões
académicas, estudos e ensinamentos sociopolíticos, lembranças particulares e
narrativas histórico-institucionais, como, por exemplo, nas Conferências
promovidas pelo Departamento Cultural do Colégio Universitário Pio XII e pelo
Centro de Cultura Europeia (nomeadamente aquela que apresentei e moderei com
ele e com Jaime Gama), sob a empenhada tutela do nosso querido Director (Rev. Padre Dr. Joaquim António de Aguiar, CMF); na sua visita à Praia da Vitória, em
companhia da sua filha mais nova e do Padre Aguiar; na superior cedência e
acolhimento editorial do meu livro O Risco das Vozes (que foi publicado, em 2006, pela Academia Internacional da Cultura Portuguesa, a que tão diligentemente
presidia, tal como se dignou citar o meu ensaio sobre o Império do Espírito
Santo), para já nem salientar o seu notável e reconhecido papel no Conselho
Supremo da nossa Sociedade Histórica da Independência de Portugal, na Sociedade
de Geografia, na Academia das Ciências de Lisboa, no Instituto D. João de
Castro (nascido este sob a égide dinamizadora e à sombra claustral do Pio XII…)
e, evidentemente, o seu magistério universitário em Portugal e no Brasil, e os
seus ensaios e tratados de Ciência e Filosofia Política, Geoestratégia,
Diplomacia e Teoria da Cultura.
Por estas e outras múltiplas razões, já antes do seu
falecimento, foi o Prof. Adriano Moreira justamente agraciado com altas
Condecorações Honoríficas nacionais, louvores, reconhecimentos e homenagens,
edições biográficas, reportórios bibliográficos e teses sobre a sua vida,
obras, carreira docente e política, de entre as quais registo as de Vítor
Gonçalves, José Filipe Pinto e Marcos Farias Ferreira.
Todavia, nesse horizonte de registos públicos da vida e
obra do Prof. Adriano Moreira, igualmente merece assinalável destaque o
espólio, verdadeiramente
precioso para o nosso País no seu todo,
existente em Bragança, no Centro
Cultural e Biblioteca Adriano Moreira, que, com duplo e complementar alcance
pessoal e colectivo, material e simbólico, pluridimensional e multidisciplinar,
constitui e pode contribuir para um mais aprofundado estudo e uma mais ampla
compreensão da História, da Cultura e do Destino de Portugal no Mundo, a partir
de uma espécie de cartografia crítica das leituras e do pensamento
deste insigne Professor e Estadista, tal como aquele acervo documenta e revela,
ou pode ajudar a revelar, através dos sinais da sua eticidade – isto
é, do seu tempo interior e pessoal, da sua situada temporalidade histórico-civilizacional,
tão marcada (e recorrentemente estigmatizada na mutável crucificação das
Cidades do Homem terreno…) por uma visão de raiz agostiniana, visivelmente próxima
de Toynbee, mas também afim da poética e da epopeia camoniana, da teorese
vieiriana, hispânica e luso-afro-brasileira – que bem espelhada está nos
seus livros, escritos, marcas de ideal, acções, sonhos e até de utopias, tudo
realçado no cruzamento espiritual e ideográfico, filosófico, jurídico-político,
histórico-cultural, académico e religioso das categorias do seu pensamento existencial
e da sua hermenêutica da historicidade portuguesa e universal, e desse modo espelhando
a personalidade, o carácter e a alma do Prof. Adriano Moreira:
– E é assim que, por estes dias
de um tempo destinalmente erodido por provecta idade e pela sua longa caminhada
existencial – ao vê-lo partir do nosso convívio terrestre – fiquei primeira e
logo imediatamente a revê-lo chegar, vezes sem conta e anos e anos a fio, ao
gabinete de trabalho do Padre Aguiar (seu irmão de peito e de frutuoso trabalho
intelectual e concretizado em vários e pioneiros projectos institucionais, culturais
e universitários), lá no nosso saudoso Colégio Universitário Pio XII, para
dialogar, desabafar, ensinar, conferenciar, moderar, animar e partilhar tantos
e tantos sonhos, certezas, receios, desencantos e persistentes planos
alternativos ou complementares, ajudando a pensar
sempre e a agir a par e em
consequência para a frente e para cima, numa dialéctica evolutiva, espiralada e ascensional
(como recolhera de Teilhard de Chardin) e como de modo conceptual e simbólico
também gostava de significar com aquela conhecida e recorrentemente usada imagem
da roda (histórico-temporalmente mutável, contingente, civilizacional e
antropológico-orbitalmente giratória…), porém perpetuamente centrada,
assente ou nuclearmente dinamizada sob a regência de uma espécie de eixo
transcendental – cujos contornos metafóricos, cósmicos, religiosos e
metafísicos estão analogamente presentes nos textos e narrativas da Tradição filosófica, poética e sapiencial
ocidental e oriental, tal como também em muitos dos discursos científico-cosmológicos
e suas revoluções paradigmáticas (desde os Gregos a Copérnico e até às modernas
Teorias do Átomo…).
Do Prof. Adriano, como filial e
quase familiarmente o nomeávamos, retenho enfim, sempre, um singular retrato-presença viva, naquele seu
carismático e testemunhal misto de sapiente e vivo olhar crítico,
simultaneamente esperançoso, céptico, ansioso e utópico sobre o Mundo e a
História, a Política e a Estratégia, a Cultura e a Fé Cristã (nomeadamente face
ao “desafio que a doutrina conciliar trazia ao legado humanista europeu” e não
só…), – enfim, sobre a Identidade e a comunidade de Destino de Portugal e dos
Portugueses (afinada com Agostinho da Silva e Gilberto Freire), numa
incansável, inquebrável, indomável e amiúde crucificante procura agónica e
redentora dos sinais do Tempo (categoria
histórico-civilizacional e metafísica sempre presente em toda a sua pujante
reflexão intelectual e nas suas narrativas literárias, memoriais e espirituais,
como exemplarmente revelou, entre tantos outros livros e conferências, em A Espuma
do Tempo, Memórias do Tempo de Vésperas ou em Notas do Tempo
Perdido.
Infelizmente, deixa-nos Adriano
Moreira num contexto nacional, europeu e internacional onde não faltam motivos
de apreensão, muitos deles pressentidos e analisados por ele bem cedo e insistentemente
materializados nas contemporâneas vigências, vesperais ou já vigentes e
perigosas derivas espirituais e demenciais ideologias, crises e ameaças no
Mundo e em Portugal, num quadro de falhanços socioeconómicos, morais e
ético-políticos, regressões desumanas, interesses e abúlicas passividades de
países e povos inteiros, como ele diagnosticava em 2011…
– “Falhámos na democracia participativa e no debate público, baseados numa
informação acessível e honesta. Não conseguimos estabelecer uma Justiça em que
se possa confiar como última instância de tutela e garantia dos nossos direitos
e deveres. Não soubemos valorizar a ideia de responsabilidade pública através
da qual uma espécie de frugalidade útil se imponha à voracidade ostensiva do
dispêndio inútil. Não melhorámos significativamente os padrões de equidade, nem
reduzimos as fontes de desigualdade excessiva. Não vencemos a fraude nem a
corrupção, factores de iniquidade e inimigos da decência humana. Pior que tudo,
perdemos de vista a continuidade e o futuro, habituámo-nos a viver com se
ninguém viesse depois, como se não tivéssemos filhos e netos”.
Por tudo isto, numa época tão indigente
como a nossa, tornar a evocar o Prof. Adriano Moreira por estes dias da sua
última partida de entre nós e da nossa Pátria comum, não poderíamos deixar de gratamente
retornar hoje à escuta da sua palavra, atentamente auscultando as heranças e
lições das suas vivências, na configuração crítica, reflexiva e prática de um dever de exercício de verdadeira
cidadania universal e de um direito
de apelo à inteligência nacional e
regional, – como ele escreveu, para uma lúcida e urgente nova definição
do estatuto de Portugal e das suas parcelas constitutivas, integrantes e
solidariamente integradas sob o signo trans-temporal e trans-histórico da
Portugalidade.
– “Creio ainda que desta crise de incerteza
resulta algo mais. A convicção
de que os Portugueses não podem ou
não devem ser chamados apenas para receber e sofrer as más notícias. Para matérias tão importantes como a
sua Constituição e a integração europeia, nunca foram solicitados a debater e participar, menos ainda a aprovar. As escolhas
actuais e a dureza do regime económico e social em que vamos
viver são tais que é tempo
de se fazer justiça ao povo. Informá-lo
de modo completo e honesto,
chamá-lo a discutir e dar a sua opinião
seria uma excelente maneira de começar
a olhar para o futuro”.
Angra do Heroísmo, 24 de Outubro de 2022
_______________________________
Em "Diário Insular", Angra do Heroísmo, 29.10.2022
e "Correio dos Açores", Ponta Delgada, 30.10.2022.