domingo, outubro 30, 2022

 

Memórias e Evocações

do Prof. Adriano Moreira

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Em 6 de Setembro de 2012, quando o Prof. Adriano Moreira comemorava o seu nonagésimo aniversário, efeméride justamente lembrada em diversos círculos intelectuais, académicos e mediáticos, com especial destaque no Jornal de Letras e na RTP1 (com as Entrevistas feitas por Soromenho Marques e Fátima Campos Ferreira), no Público (com a publicação de um belo texto de Isabel Moreira sobre o seu pai) e nas redes sociais (v.g. no Facebook, onde vimos acrescidamente partilhados, com outros reconhecidos amigos, depoimentos e apreços pela sua exemplar figura).

 Por mim – que tive, há mais de trinta anos, a feliz possibilidade de conhecer Adriano Moreira e de poder contar desde então com a generosidade honrosa da sua Amizade pessoal e da sua colaboração institucional –, não podia agora – nesta triste data da sua morte – deixar passar  mais uma significativa e sentida ocasião sem, também aqui e a partir destas insulares paragens, tornar a evocar a sua longa Vida e a sua vasta e rica Obra, mesmo que apenas na circunstância de um breve e localizado testemunho, cujo texto retoma hoje e em síntese compósita, à letra e na vigência ainda do essencial de anteriores escritos, algumas das memórias e afectos que dele guardo.

 



– Não me é fácil todavia, num sucinto depoimento como este, elencar tantas ou todas as ocasiões em que pude beneficiar com os seus diálogos e partilhar da sua franca companhia, amizade, conselho e estima, mas devo salientar as muitas oportunidades em que, bem de perto, colhi bons frutos das suas reflexões académicas, estudos e ensinamentos sociopolíticos, lembranças particulares e narrativas histórico-institucionais, como, por exemplo, nas Conferências promovidas pelo Departamento Cultural do Colégio Universitário Pio XII e pelo Centro de Cultura Europeia (nomeadamente aquela que apresentei e moderei com ele e com Jaime Gama), sob a empenhada tutela do nosso querido Director (Rev. Padre Dr. Joaquim António de Aguiar, CMF); na sua visita à Praia da Vitória, em companhia da sua filha mais nova e do Padre Aguiar; na superior cedência e acolhimento editorial do meu livro O Risco das Vozes (que foi publicado, em 2006, pela Academia Internacional da Cultura Portuguesa, a que tão diligentemente presidia, tal como se dignou citar o meu ensaio sobre o Império do Espírito Santo), para já nem salientar o seu notável e reconhecido papel no Conselho Supremo da nossa Sociedade Histórica da Independência de Portugal, na Sociedade de Geografia, na Academia das Ciências de Lisboa, no Instituto D. João de Castro (nascido este sob a égide dinamizadora e à sombra claustral do Pio XII…) e, evidentemente, o seu magistério universitário em Portugal e no Brasil, e os seus ensaios e tratados de Ciência e Filosofia Política, Geoestratégia, Diplomacia e Teoria da Cultura.

 Por estas e outras múltiplas razões, já antes do seu falecimento, foi o Prof. Adriano Moreira justamente agraciado com altas Condecorações Honoríficas nacionais, louvores, reconhecimentos e homenagens, edições biográficas, reportórios bibliográficos e teses sobre a sua vida, obras, carreira docente e política, de entre as quais registo as de Vítor Gonçalves, José Filipe Pinto e Marcos Farias Ferreira.

 Todavia, nesse horizonte de registos públicos da vida e obra do Prof. Adriano Moreira, igualmente merece assinalável destaque o espólio, verdadeiramente precioso para o nosso País no seu todo, existente em Bragança, no Centro Cultural e Biblioteca Adriano Moreira, que, com duplo e complementar alcance pessoal e colectivo, material e simbólico, pluridimensional e multidisciplinar, constitui e pode contribuir para um mais aprofundado estudo e uma mais ampla compreensão da História, da Cultura e do Destino de Portugal no Mundo, a partir de uma espécie de cartografia crítica das leituras e do pensamento deste insigne Professor e Estadista, tal como aquele acervo documenta e revela, ou pode ajudar a revelar, através dos sinais da sua eticidade – isto é, do seu tempo interior e pessoal, da sua situada temporalidade histórico-civilizacional, tão marcada (e recorrentemente estigmatizada na mutável crucificação das Cidades do Homem terreno…) por uma visão de raiz agostiniana, visivelmente próxima de Toynbee, mas também afim da poética e da epopeia camoniana, da teorese vieiriana, hispânica e luso-afro-brasileira – que bem espelhada está nos seus livros, escritos, marcas de ideal, acções, sonhos e até de utopias, tudo realçado no cruzamento espiritual e ideográfico, filosófico, jurídico-político, histórico-cultural, académico e religioso das categorias do seu pensamento existencial e da sua hermenêutica da historicidade portuguesa e universal, e desse modo espelhando a personalidade, o carácter e a alma do Prof. Adriano Moreira:

 – E é assim que, por estes dias de um tempo destinalmente erodido por provecta idade e pela sua longa caminhada existencial – ao vê-lo partir do nosso convívio terrestre – fiquei primeira e logo imediatamente a revê-lo chegar, vezes sem conta e anos e anos a fio, ao gabinete de trabalho do Padre Aguiar (seu irmão de peito e de frutuoso trabalho intelectual e concretizado em vários e pioneiros projectos institucionais, culturais e universitários), lá no nosso saudoso Colégio Universitário Pio XII, para dialogar, desabafar, ensinar, conferenciar, moderar, animar e partilhar tantos e tantos sonhos, certezas, receios, desencantos e persistentes planos alternativos ou complementares, ajudando a pensar sempre e a agir a par e em consequência para a frente e para cima, numa dialéctica evolutiva, espiralada e ascensional (como recolhera de Teilhard de Chardin) e como de modo conceptual e simbólico também gostava de significar com aquela conhecida e recorrentemente usada imagem da roda (histórico-temporalmente mutável, contingente, civilizacional e antropológico-orbitalmente giratória…), porém perpetuamente centrada, assente ou nuclearmente dinamizada sob a regência de uma espécie de eixo transcendental – cujos contornos metafóricos, cósmicos, religiosos e metafísicos estão analogamente presentes nos textos e narrativas  da Tradição filosófica, poética e sapiencial ocidental e oriental, tal como também em muitos dos discursos científico-cosmológicos e suas revoluções paradigmáticas (desde os Gregos a Copérnico e até às modernas Teorias do Átomo…).

 


Do Prof. Adriano, como filial e quase familiarmente o nomeávamos, retenho enfim,  sempre, um singular  retrato-presença viva, naquele seu carismático e testemunhal misto de sapiente e vivo olhar crítico, simultaneamente esperançoso, céptico, ansioso e utópico sobre o Mundo e a História, a Política e a Estratégia, a Cultura e a Fé Cristã (nomeadamente face ao “desafio que a doutrina conciliar trazia ao legado humanista europeu” e não só…), – enfim, sobre a Identidade e a comunidade de Destino de Portugal e dos Portugueses (afinada com Agostinho da Silva e Gilberto Freire), numa incansável, inquebrável, indomável e amiúde crucificante procura agónica e redentora dos sinais do Tempo (categoria histórico-civilizacional e metafísica sempre presente em toda a sua pujante reflexão intelectual e nas suas narrativas literárias, memoriais e espirituais, como exemplarmente revelou, entre tantos outros livros e conferências, em  A Espuma do Tempo, Memórias do Tempo de Vésperas ou em Notas do Tempo Perdido.

Infelizmente, deixa-nos Adriano Moreira num contexto nacional, europeu e internacional onde não faltam motivos de apreensão, muitos deles pressentidos e analisados por ele bem cedo e insistentemente materializados nas contemporâneas vigências, vesperais ou já vigentes e perigosas derivas espirituais e demenciais ideologias, crises e ameaças no Mundo e em Portugal, num quadro de falhanços socioeconómicos, morais e ético-políticos, regressões desumanas, interesses e abúlicas passividades de países e povos inteiros, como ele diagnosticava em 2011…

 – “Falhámos na democracia participativa e no debate público, baseados numa informação acessível e honesta. Não conseguimos estabelecer uma Justiça em que se possa confiar como última instância de tutela e garantia dos nossos direitos e deveres. Não soubemos valorizar a ideia de responsabilidade pública através da qual uma espécie de frugalidade útil se imponha à voracidade ostensiva do dispêndio inútil. Não melhorámos significativamente os padrões de equidade, nem reduzimos as fontes de desigualdade excessiva. Não vencemos a fraude nem a corrupção, factores de iniquidade e inimigos da decência humana. Pior que tudo, perdemos de vista a continuidade e o futuro, habituámo-nos a viver com se ninguém viesse depois, como se não tivéssemos filhos e netos”.

 Por tudo isto, numa época tão indigente como a nossa, tornar a evocar o Prof. Adriano Moreira por estes dias da sua última partida de entre nós e da nossa Pátria comum, não poderíamos deixar de gratamente retornar hoje à escuta da sua palavra, atentamente auscultando as heranças e lições das suas vivências, na configuração crítica, reflexiva e prática de um dever de exercício de verdadeira cidadania universal e de um direito de apelo à inteligência nacional e regional, – como ele escreveu, para uma lúcida e urgente nova definição do estatuto de Portugal e das suas parcelas constitutivas, integrantes e solidariamente integradas sob o signo trans-temporal e trans-histórico da Portugalidade.

 – “Creio ainda que desta crise de incerteza resulta algo mais. A convicção de que os Portugueses não podem ou não devem ser chamados apenas para receber e sofrer as más notícias. Para matérias tão importantes como a sua Constituição e a integração europeia, nunca foram solicitados a debater e participar, menos ainda a aprovar. As escolhas actuais e a dureza do regime económico e social em que vamos viver são tais que é tempo de se fazer justiça ao povo. Informá-lo de modo completo e honesto, chamá-lo a discutir e dar a sua opinião seria uma excelente maneira de começar a olhar para o futuro”.

 Angra do Heroísmo, 24 de Outubro de 2022

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Em "Diário Insular", Angra do Heroísmo, 29.10.2022

e "Correio dos Açores", Ponta Delgada, 30.10.2022.