Os Fantasmas de Secretaria
O título desta Crónica talvez
relembre logo – e com razão – um outro da fascinante obra de Jacques Bonnet (Des bibliothèques pleines de fantômes,
Éditions Denoël, 2008), cuja primorosa tradução portuguesa, por José Mário
Silva (diligente mantenedor do Blogue “Bibliotecário de Babel”), foi publicada
pela Quetzal (Bibliotecas Cheias de
Fantasmas, Lisboa, 2010) e constituiu então merecido escaparate na nossa
acolhedora e informada Livraria In Folio.
O livro – na verdade, um livro de amor aos livros… – começa
por relatar o encontro, em Coimbra, em 1983, do autor – um francês especialista
em Bibliofilia e Teoria da Leitura, à semelhança de Umberto Eco, José Mindlín e
Alberto Manguel (de quem aqui também já falei) – com uma obra de Maria José de
Lancastre (Fernando Pessoa – uma
fotobiografia, Lisboa, INCM e Centro de Estudos Pessoanos, 1981), na qual
vem reproduzida uma carta de candidatura
(datada de 16.09.1932) do poeta da
Mensagem ao lugar de conservador-bibliotecário do Museu Condes de Castro
Guimarães (em Sintra), cargo para o qual o criador do Livro do Desassossego foi preterido a favor de um medíocre “pintor
obscuro”, hoje inominável, vago e insignificante manga de alpaca que era…
E isto aconteceu apesar do currículo profissional e da invocada e
objectivamente abonatória obra literária
e cultural de Fernando Pessoa, – nem se podendo sequer falar então ainda,
naturalmente, da sua esplendorosa posteridade… –, e onde, a determinada altura
e a propósito do dito concurso, se pode ler o seguinte:
– “Salvo o que de competência e
idoneidade está implícito nas habilitações indicadas como motivo de preferência
nos parágrafos do artigo, e portanto se prova documentalmente pelos documentos
referentes às indicações de cada parágrafo, a competência e a idoneidade não
são susceptíveis de prova documental. Incluem, até, elementos como o aspecto
físico e a educação, que são indocumentáveis”…
O livro de Jacques Bonnet é
apaixonante no seu todo, mas o registo da carta de Fernando Nogueira Pessoa
acaba por abrir logo – para leitura
crítica, bem entendido … – uma insuspeitada “janela de oportunidades” (como
agora os gestores da nossa provinciana e compadrinhada nomenclatura vão
debitando, à toa, nos seus altos postos e míopes postigos…), – ou não estivessem
eles equiparados àquele antigo júri da Câmara de Cascais, o qual, “certamente
perplexo com esta retórica insólita [de Fernando Pessoa, obviamente…], não se
deixou convencer, tendo escolhido prudentemente um outro candidato”, – certamente
menos brilhante e competente porém bem
mais ao jeito daqueles pobres diabos
jurados e arregimentados, criaturas submissas, serventuários mínimos e alinhados
pela mais rasteira, venal e gémea bitola político-administrativa daquela época
de trinta e tal, no século passado…
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Jornal “Diário dos
Açores” (Ponta Delgada, 20.11.2012);