José Enes ou A Filosofia
como Projecto de Vida
1. Mal sabia eu ao rumar à ilha de Ramon Llull que o meu querido
Prof. José Enes deixaria nesse dia a terrena casa do ser, – aquela que na mais profunda raiz da nossa condição existencial tanto configura o
sentido contingente, o destino e o estatuto ontológico da “finitude dos
limites” do homo viator, como é condição de possibilidade do acesso novíssimo à Porta daquele Futuro
Absoluto em cuja Transcendência cremos e confiamos, enquanto na consciência reflexa e nos seus signos – no silêncio matutino da Poesia ou nos verbos e metáforas da Filosofia – expectantemente questionamos se
“a aridez deste deserto/chamará pelas fontes”…
Agora – para breve testemunho
deste excepcional pensador português, para além do que antes escrevi –, que
mais hei-de evocar dos anos em que privei e do muito que académica e
cientificamente aprendi, culturalmente trabalhei e partilhei com ele, na
Universidade, na sociedade e na fraterna intimidade da Família?
– Na impossibilidade de o dizer
aqui de outro ampliado modo, como ele o merecerá sempre, saudosamente relembro
hoje a lucidez orientadora das suas palavras generosas, os gestos paternais, a
luminosidade inspiradora do pensamento vivo, a brilhante recriação hermenêutica
das linguagens, a firmeza ética do carácter pessoal e institucional, – todos na
exemplaridade cônscia do seu espírito filosófico, do seu universal saber
integrado e da sua inquieta e inconsútil alma açoriana.
2. Passam agora mais de 20 anos sobre a justíssima Homenagem que a
Câmara de Ponta Delgada prestou ao Prof. José Enes, concedendo-lhe então (1992)
o merecido estatuto de Cidadão Honorário
daquela maior cidade dos Açores – louvável iniciativa que aliás viria a ser
seguida, em 1999, pelas Lajes do Pico (em cujo concelho, na freguesia da
Silveira, o homenageado nascera a 18.08.1924) – e dando depois, em 2005, o nome
daquele verdadeiro fundador, primeiro e Magnífico Reitor da nossa Universidade
a uma das novas praças da zona “Urbe Oceanus” do município, sendo sua
presidente Berta Cabral, – entidades autárquicas açorianas que assim figuram
entre todas as que reconhecida e publicamente o louvaram em vida.
Por outro lado e a par ainda
daqueles justos agraciamentos, recordo os do Corpo Nacional de Escutas (que lhe
atribuiu, em 1958, a Medalha de Ouro de
Gratidão pela sua liderante introdução do Escutismo Católico no Seminário
de Angra); da Universidade de Rhode Island (Doutoramento Honoris Causa, em 1978); da Universidade Aberta (da qual Vice-Reitor
e que lhe concedeu a respectiva Medalha
de Ouro, em 1994), e – enfim … – da Presidência da República Portuguesa,
que o condecorou sucessivamente com os Graus de “Grande Oficial da Ordem do
Infante” (1964) e da “Ordem da Instrução Pública” (1983).
Quanto à Universidade dos Açores,
saliente-se os louvores académicos que lhe foram prestados em 2005 (sendo
Reitor Avelino Meneses), altura em que foi publicado, sob coordenação de José
Luís Brandão da Luz, o esmerado e significativo volume Caminhos do Pensamento, Estudos de Homenagem ao Professor José Enes,
no qual colaboraram alguns dos estudiosos da sua Obra, e outros discípulos,
colegas e amigos nossos.
3. Hoje, estando a decorrer exactamente um mês sobre a data do
falecimento (1 de Agosto) daquele que foi uma das mais distintas personalidades
intelectuais, literárias, institucionais, académicas, sociais, culturais e
espirituais da sociedade açoriana da segunda metade do Século XX, e não tendo
eu podido deixar antes o solicitado e devido testemunho sobre a Vida e Obra do
Prof. José Enes, a quando e a propósito daquela triste ocorrência, aqui ficam
então agora estas palavras, intencionalmente retomando para tal e quase na
íntegra também o texto mesmo de uma anterior e já distante evocação de há 20
anos, porém relido e novamente subscrito o seu conteúdo à luz das presentes
circunstâncias e na planeada sequência daquilo que, semanas atrás, nestas
colunas vinha abordando sobre algumas das mais relevantes dinâmicas societárias da vida dos Açores, onde José Enes
desempenhou um papel absolutamente ímpar
e talvez insuperável!
De resto e para além do mais,
estas notas não podem esquecer – mas todavia ressalvam a preceito da
respeitável efeméride actual – muito daquilo que, por entre ventos e marés, foi
tantas vezes invejosa ou despeitadamente movido ao Prof. José Enes –
intolerantes dissensões doutrinárias e ideológicas, incompreensões e tentativas
de incendiários libelos (recordáveis por entre machadadas obscuras…), venenos à
falsa fé ou a coberto de seráficas e invertebradas letras e tretas, etc. –,
todos a modos de ignóbeis, rasteiros e quase expatriantes golpázios, apenas
para escusado e interesseiro conluio ou tentativa frustrada de silenciamento pessoal e
político-institucional por parte de tantos daqueles que, agora, deixam cair no
proscénio do cinismo nacional, regional e local a hipócrita lágrima da mais repugnante compunção póstuma sobre os
seus inegáveis e aproveitados legados, fundamentados projectos ou indicativas
utopias concretas…
4. Assistente que fui do Prof. José Enes, durante anos, na Universidade
dos Açores (na leccionação das Cadeiras de Ontologia e Axiologia e Ética);
orientado por ele para Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica;
companheiro e acompanhante de prospectivos trabalhos no seu tão empenhativo
CERIE (Centro de Estudos de Relações Internacionais e Estratégia); privilegiado
merecedor da sua generosa, paternal e fraterna Amizade, daquela espécie de
íntima e sapiente tutoria filosófica e
humana do seu profundo e complexo saber comprometido, e da sua densa e partilhada
experiência de vida, – é-me difícil dar, em poucas linhas, depoimento adequado
à estatura do Filósofo de À Porta do Ser
(1969), Linguagem e Ser (1983) e Noeticidade e Ontologia (1999); do
Crítico e Ensaísta de Estudos e Ensaios
(1982) e Autonomia da Arte (1965); do
Poeta de Água do Mar e do Céu; do
sistemático estudioso, teórico comprometido e prático militante da dominância das origens da Açorianidade e
na Autonomia, para já nem falar nas suas propedêuticas teoréticas e reflexões
exegéticas nas esferas da Teologia, Fenomenologia da Religião, Poética
Literária (Roberto Mesquita, Pessoa e Nemésio), Sociologia, Filosofia da
Ciência, História da Cultura e Filosofia Social e Política.
– De resto, tanto na Educação e
no Ensino diocesanos e no Magistério Universitário (Universidade Católica,
Universidade dos Açores e Universidade Aberta), quanto através de Conferências,
Traduções e Investigações filosóficas e multidisciplinares, sempre José Enes
ocupou e ocupará lugar cimeiro na inteligência
da Cultura e da Identidade portuguesas, nomeadamente no particular
horizonte temático de um original e inovador jeito de Pensar, perspectivado a
partir de problematizáveis primórdios e prosseguimentos escolásticos e tomistas
(Aristóteles, Tomás de Aquino, Pedro da Fonseca, Suárez, António Cordeiro,
Hoenen…), mas depois logo, como identicamente detectou Gustavo de Fraga, num
“diálogo filosófico de que ficarão resultados e vestígios seguros na nossa
linguagem filosófica e literária”, mormente no confronto crítico, categorial e
discursivo, com Heidegger, Kant, Descartes, Hegel e Ricoeur.
5. Figura cimeira, liderante e referencial de uma geração de
Açorianos ilustres e empenhados na nossa comunidade
insular e autonómica, e na nossa comunidade
de destino, pátria e civilização, a ele se deve, a par do imenso labor da reflexão intelectual, uma esforçada e
multímoda acção prática, ambas
conseguidas no contexto possível das diferentes e mutáveis circunstâncias
orgânicas e das conjunturas históricas e mentais do tempo em que viveu…
E assim aconteceu ainda, como já
aqui salientei anteriormente, no âmbito pioneiro das Semanas de Estudos dos Açores, nos círculos e centros pedagógicos e
associativos diocesanos da renovação
conciliar e socio-espiritual Católica (Cursos
de Cristandade, especialmente), no Suplementarismo Cultural (“A União”), na
produção e no movimento editorial e artístico nacional e dos Institutos
Culturais dos Açores, etc., aonde a contribuição de José Enes foi decisiva (e mantém-se contemporaneamente válida!)
para aquilo que ele próprio definiu e sintetizou como sendo a elaboração do pensamento da nossa
sociedade.
– Ora todo esse projecto
comunitário e institucional, simultaneamente teórico, técnico e prático, também
foi, é e deve continuar a ser, uma procura de formulação explícita e
sistemática da experiência histórica de
sociedade açoriana, com vista à sua integral evolução e ao seu desenvolvimento cultural,
científico e educativo, socioeconómico, político-administrativo e espiritual!
Porém, mais do que a minha discursividade
valerá ouvir a sua, na formulação da intencionalidade
precisiva das dinâmicas e das virtualidades de um saber integrado e de uma prática lúcida, para
fundamentação segura e competente efectivação de tudo aquilo que neste domínio
pode e deve emancipadoramente ser esperado:
– “No processo histórico as
decisões são tomadas mediante a interpretação das potencialidades que
estabelecem o fluxo causativo dos acontecimentos. O devir do acontecer
histórico é formalmente constituído pelo discurso da razão hermenêutica e pelo
discurso da razão prática. E são as razões
fundamentantes da razão hermenêutica e as razões motivantes da razão prática que formam e dão consistência
àquilo a que se costuma chamar o destino de uma sociedade ou a sua vocação
histórica, ou o seu papel na história, entendidas, é claro, estas expressões
como denotativas de entidades formalmente históricas.
“Ao longo do seu percurso
histórico e sob o aguilhão dos obstáculos e dos percalços, vão-se aquelas
razões armando com as categorias e os argumentos dos seus respectivos
discursos.
“E à medida que o nível cultural da
sociedade sobe e que no seu seio surgem homens dotados de alto poder de
cerebração, aqueles conceitos e raciocínios se vão explicitamente formalizando
e tendendo para a recíproca integração num sistema. Assim se vai formando
aquilo a que se dá o nome de pensamento
de uma sociedade. Isto é: o pensamento da sociedade sobre si mesma e que
ela forma através da sua experiência histórica”.
E concluía o Prof. José Enes no
texto que venho tendo em atenção:
“Parafraseando [Unamuno] nós
poderemos chamar aos Açores o miradoiro
atlântico da nossa visão de Portugal. Por força da em nós vigente
transcendentalidade da proto-história dos Açores, para usar a expressão
nemesiana, a nossa perspectiva atlântica é de facto essencial para a descoberta
dos vectores mais autênticos da historicidade portuguesa”.
E também assim, por tudo e para
tudo isto, é que toda a Obra de José Enes representa um legado precioso e será sempre um factor de enriquecimento e um ponto de luminosa referência na construção e na ultrapassagem históricas
da consciência e da auto-consciência dos Açores, perante todos os desafios,
impasses ou retrocessos do presente ou do futuro… Mas para tal é necessário
conhecê-la, estudá-la, divulgá-la e pensar com ela, para – na medida do
possível (face a tantas das condicionantes e indigências actuais a que estamos
amarrados…) – levá-la à vantajosa e crítica frutificação real, renovada e
sistemática!
– Será essa certamente a melhor homenagem
que o País, os Açores e os Açorianos de boa
e racional vontade lhe poderão gratamente vir a prestar, respeitando a sua
memória e partilhando a força meditativa e crítica do seu espírito, quando ele já não está – apenas ao (a)parecer
fenoménico, digo, como não sendo do mesmo modo, isto é, ontológica e
existencialmente configurado como dantes
– agora, ainda vivo e presente, entre nós…
Angra do Heroísmo, 1 de Setembro de 2013
Angra do Heroísmo, 1 de Setembro de 2013
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Em Jornal "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 01.09.2013).
Versão parcial em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 01.09.2013).
Um extracto deste texto (§ 1) foi também publicado no Suplemento de Homenagem ao Prof. José Enes, publicado pelo Jornal "Correio dos Açores" (Ponta Delgada, 01.09.2013), com o título A Exemplaridade do Espírito.