Memória e Presença
de Albert Camus
1. No passado dia 7 de Novembro ocorreu o centésimo aniversário do
nascimento de Albert Camus, escritor, ensaísta, dramaturgo, jornalista e
filósofo francês nascido na Argélia (Mondovi, Constantina, 1913) e falecido em
França (Villeblevin, Yonne), num acidente de viação, a 4 de Janeiro de 1960,
conforme sucintamente tivemos já ocasião de evocar aqui.
– Todavia, por sugestão feita ao DI,
retomamos hoje desenvolvidamente o texto dessa memória, registando ainda que o
desaparecimento de Camus foi então também assinalado entre nós, neste mesmo
jornal angrense, logo na sua edição de 5 de Janeiro, e ainda com uma posterior
e específica evocação inserida na sua página de Letras e Artes (Nº. 284, 1º. da 2ª. Série), então dirigida por
Emanuel Félix, na qual foi inserido, em caixa, um breve mas denso e
significativo extracto de La Chute (A Queda), no qual se desenha uma
característica reflexão camusiana sobre a morte, o suicídio, o martírio, o
esquecimento, o escárnio, o aproveitamento e a complexidade existencial da compreensão…
Figura de referência na
Literatura do Século XX, Camus é autor de uma vasta obra que inclui, entre
outras títulos, O Estrangeiro
(adaptado ao cinema, em 1967, por Visconti), A Peste, O Homem Revoltado,
O Mito de Sísifo, Os Justos, O Exílio e o Reino, A Queda
e Cartas a um Amigo Alemão (com um
desenho de capa por Lima de Freitas), todos editados pelos “Livros do Brasil”,
muitos deles traduzidos em português (nomeadamente por António Quadros, Urbano
Tavares Rodrigues, José Carlos Gonzalez e Virgínia Motta), sendo que alguns
incluíam notáveis e pioneiros Prefácios ou Estudos originais no nosso País (especialmente
no caso de António Quadros); versões das respectivas introduções às edições
francesas, como a de Jean-Paul Sartre (de quem aliás Camus se afastaria em 1952
por divergências políticas e filosóficas) para O Estrangeiro, traduzida de Rogério Fernandes; a de Jean Sarochi
para A Morte Feliz; a de Paul
Viallaneix para Cadernos II - Escritos de
Juventude), e outras sugestivas explanações informativas ou ensaísticas (como
a do posfácio de Liselotte Richter a O
Mito de Sísifo).
2. Filho de um humilde trabalhador rural e apesar de grandes
dificuldades materiais, Camus frequentou a Universidade de Argel, onde terminaria
uma licenciatura em Filosofia com uma tese sobre S. Agostinho e Plotino. Depois, tendo sido forçado a deixar a
carreira académica por motivos de saúde, dedica-se ao teatro e ao jornalismo,
tendo trabalhado no Paris-Soir e sido
chefe de redacção (terminada a II Guerra Mundial e a ocupação nazi da França,
contra a qual lutara ao lado da Resistência) no jornal Combat.
Prémio Nobel da Literatura (1957),
todo o pensamento, as acções e os livros de Albert Camus foram exemplar e
genuinamente moldados e movidos por profundas inquietações existenciais,
humanistas e metafísicas, e político-ideológicas e éticas, estando fundamentalmente
marcados por recorrentes motivos de reflexão e tematização sobre a condição humana,
a finitude e a angústia, o absurdo e a revolta, os totalitarismos e a
resistência moral, a arte e a paixão pela vida, o compromisso e o perdão, o
sofrimento e a violência, o medo e a morte, a justiça e a felicidade.
Esta efeméride camusiana tem vindo
a ser assinalada um pouco por todo o mundo, sendo todavia que na própria França
não foi possível promover nenhuma comemoração
oficial sob a égide do seu Ministério da Cultura e da Comunicação, não
tendo igualmente chegado a concretizar-se qualquer evento evocativo na
Biblioteca Nacional, nem sequer tendo chegado a ter lugar consensual a prevista
Exposição, no âmbito da capital europeia da cultura, em Marselha e
Aix-en-Provence…
– E assim, pelos vistos, a
memória de Camus, o seu pensamento, as suas tomadas de posição, as suas acções
e militâncias, e tudo aquilo que ainda nele foi matéria de controvérsia,
dissensão ou dissidência (a questão da Argélia, a experiência comunista
soviética, o desalinhamento partidário, a diferenciação face ao existencialismo
e ao marxismo, a demarcação perante o recurso ao terrorismo armado, etc.), tudo
isso continua a pesar na multiplicidade divergente, ou contraditória, com que o
autor de O Avesso e o Direito continua
a ser visto, lido, situado… e dificilmente recuperável (como até com os seus
restos mortais o figurão de Sarkozy tentou instrumentalizá-lo ao pretender transferir
o que deles (não dele!) restaria para o Panteão parisiense…
Por outro lado, muitas tem sido
as edições, congressos, simpósios, colóquios e debates que a vida e obra de
Albert Camus tem suscitado em vários países, academias e órgãos de comunicação
social, inclusive em Portugal (Universidades do Porto e Évora, Centro Cultural
de Belém, Academia das Ciências, em Lisboa, etc., sendo que nesta última proferiu
uma Conferência evocativo de Camus pelo embaixador Marcello Duarte Mathias, referencial
autor do consagrado e pioneiro ensaio A
Felicidade em Albert Camus, original de 1975, entretanto reeditado e
aumentado).
3. Entre nós, aqui em Angra, as obras de Camus foram conhecidas e
divulgadas, constituindo as respectivas edições pelos “Livros do Brasil” –
recordo – presença regular, nomeadamente, pela mão de José Teixeira de Borba,
na antiga secção e atenta montra de livraria da Loja do Adriano.
– Ali amiúde as discuti com o meu
saudoso amigo e professor de Filosofia no Liceu, Dr. Hélder Lima, com uma
abertura e uma sensibilidade críticas que os programas oficiais e os nossos
velhos e secos manuais escolares adoptados por si só não permitiam…, apesar das
diferenças em métodos e objectivos, bem notórias entre o austero e formal
Augusto Saraiva e as Antologias de Psicologia e de Filosofia muito bem organizadas
por Jorge de Macedo, Joel Serrão e Rui Grácio, que tínhamos de seguir em
conformidade (mais ou menos oficiosa…) com os programas curriculares e
disciplinares daquela época, se bem que, alguns deles, vistos à distância e
comparados com alguns critérios, (des)orientações e competências actuais, não
fossem, talvez, assim tão mal formadores como científica (e ideologicamente!)
os pintam às vezes…
Para mim, que li e estudei
Albert Camus praticamente todo e desde muito novo (e que o debati tantas vezes,
como referi, à margem das aulas liceais e depois universitárias de Filosofia…),
reconheço nele ainda hoje a mesma e perfeita síntese “viva e intacta” da sua
reflexão, timbrando inesquecivelmente “a cintilação intelectual e humana que
rodeia o seu nome”, como justamente escrevia Duarte Mathias:
– “E bem é
que assim seja, porquanto muitos dos problemas por ele abordados, das causas
por ele defendidas como das forças ocultas cuja marcha ele não se cansou de
denunciar, permanecem instalados no nosso tempo, quando não em nós mesmos. A
isto se deve, em grande parte, aliás, a sua popularidade e a actualidade do seu
pensamento”, pelo que identicamente “para muitos da minha geração, o autor de O Estrangeiro logrou ser, pelo que
escreveu e pelo que foi, mais do que uma fonte de inspiração, uma presença
amiga e estimulante”.
De resto, sobre Albert Camus,
entretanto, tem-se multiplicado, em Portugal e (ainda mais) no Brasil, estudos
e teses académicas no âmbito da língua e da cultura portuguesas, confrontando a
sua obra com a de outros escritores e pensadores de diversas áreas, correntes,
estilos e visões do homem e do mundo (casos de José Saramago e de Vergílio
Ferreira), enquanto muito ainda há a trabalhar e (re)descobrir no âmbito da sua
obra literária, filosófica, política e ética, para com ele e nele, e citando-o,
depois de termos falado “da nobreza do mister de escrever”, repormos
verdadeiramente
“o escritor
no seu verdadeiro lugar, sem outros títulos que não sejam os que partilha com
os seus companheiros de luta, vulnerável mas teimoso, injusto e apaixonado pela
justiça, construindo a sua obra sem vergonha nem orgulho à vista de todos,
sempre dividido entre a dor e a beleza, e dedicado, enfim, a tirar do seu duplo
ser as criações que obstinadamente tenta edificar no movimento destruidor da
história"...
– E isto, para lhe darmos o
direito à palavra e à esperança, como ele o mereceria no seu imaginativo e indomável
carácter, reconhecendo-o ainda nos homens do nosso tempo e nesta actualidade às
vezes tão absurda, tão injusta e tão desalmada nos seus pesados e dolorosos
rochedos de Sísifo,
“junto de
todos esses homens silenciosos que não suportam no mundo a vida que lhes é dada
senão pela recordação ou o regresso de breves e livres felicidades”!