domingo, março 23, 2014




Um Leitor dos Sinais da Fé


1. No passado dia 12, vitimado por um aneurisma da aorta abdominal, faleceu D. José da Cruz Policarpo, Cardeal e XVI Patriarca (Emérito) de Lisboa (a cuja titularidade, assumida em 1998, resignara em 2011 por limite de idade). Irmão mais velho dos nove filhos de um casal de agricultores, nascera a 26.02.1936 (Alvorninha, Caldas da Rainha, Leiria), tendo estudado Filosofia e Teologia em Santarém, Almada e no famoso Seminário dos Olivais, onde depois seria Reitor (1970-1997).

– Sacerdote em 15.08.1961; director (1961-66) do Seminário de Panafirme (Torres Vedras); Bispo (Auxiliar) de Lisboa (1978) e Cardeal em 2001, José Policarpo foi Professor de Teologia na Universidade Católica (UCP) desde 1970, Magnífico Reitor (1988/92 e 92/1996) e seu Magno Chanceler desde 1996.


2. Em Roma, onde viveu (1966-70), licenciou-se em Teologia Dogmática (com a Dissertação: Teologia das Religiões Não-Cristãs, 1968) e doutorou-se (1970) pela mesma Pontifícia Universidade Gregoriana com uma inovadora e importante Tese (“Sinais dos Tempos” – Génese Histórica e Interpretação Teológica, publicada em 1971 pela Editora Sampedro), que é reconhecidamente uma abordagem temática de “rara qualidade, tanto na parte positiva como na parte sistemática”.

– Nesse último e referencial trabalho, que mantém pleno interesse teológico, socio-pastoral, sociológico e filosófico, aborda e refaz o seu autor tanto a génese histórica, com um duplo critério de ordem cronológica e ideológica, da evolução da famoso Esquema XIII e da Gaudium et Spes, quanto os principais aspectos da obrigação de interpretar os sinais dos tempos: “justificação teológica dessa possibilidade, à luz das relações entre salvação e história; os problemas postos pelo discernimento desses sinais; as implicações práticas na vida da Igreja e dos cristãos”.

De resto, aquele mesmo tema dos “sinais dos tempos” – que vinha despertando reflexão em Portugal, como se comprova nomeadamente pela edição, também pela Livraria Sampedro (Lisboa, 1969), da obra A Igreja no Mundo de Hoje, traduzida por Manuel do Carmo Ferreira e que incluía notáveis Comentários àqueles Documentos, por conhecidos teólogos da craveira de Karl Rahner, Chenu, Schillebeeckx, Dondeyne, Calvez, Dubarle, etc. –, continua, a todos os níveis, sendo cada vez mais actual e urgente com vista ao seu discernimento e em simultâneo tanto para uma observação objectiva da História como para a sua real e efectiva transformação libertadora, tal qual D. José Policarpo acentuara da primeira:

– “A primeira condição para poder interpretar os sinais dos tempos, é ter o sentido da objectividade histórica. Todo o discernimento deve necessariamente começar por uma observação paciente e uma análise rigorosa dos acontecimentos e fenómenos humanos, que é preciso captar na sua objectividade de realidades terrestres. É preciso inventariar o mais exaustivamente possível os fenómenos observáveis sociologicamente, fenómenos que, sem serem necessariamente universais, sejam suficientemente generalizados para poderem ser característicos de uma época. Este sentido da objectividade histórica é absolutamente necessário para uma verdadeira interpretação dos sinais dos tempos”...


3. Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (1999-02, 2002-05 e 2011-2014), tendo pertencido ainda ao Conselho Pontifício da Cultura, Congregação de Educação Cristã e Conselho Pontifício para os Leigos, D. José Policarpo era detentor de sólida Cultura teológica e filosófica, fé e inteligência da fé inabaláveis, solicitude pastoral e capacidade de diálogo (recordo o seu notável diálogo crítico com Eduardo Prado Coelho...), atributos bem comprovados nas causas, missões e projectos que abraçou na Igreja e no nosso País, e cujos princípios e delineamentos doutrinais, eclesiais, socioculturais e teórico-práticos (com “verdadeiro valor teológico tanto para a teologia histórica como para a teologia sistemática”) estiveram sempre bem marcados e assim foram logo justamente reconhecidos em 1970 pelos seus orientadores jesuítas (R. Latourelle e F. Pastor)!

– Por tudo isso, por ter sido meu estimado Reitor na UCP e presidente da sua então Superior Congregação (à qual pertenci, durante dois anos lectivos, em eleita representação dos colegas do nosso Curso de Filosofia), mas depois também pelas memoráveis I Jornadas de Solidariedade Social dos Açores (1991) – nas quais, entre outros, com Francisco Pimentel (então director regional da Segurança Social e seu principal promotor), Adelaide Batista, Álamo Oliveira, António Rego, Armando Leandro, Bagão Félix, Cinelândia Cogumbreiro e Sousa, Conceição Estrela, Daniel de Sá, Fernanda Mendes, Fernando Campos, José Hermano Saraiva, Manuela Eanes, Margarida Moniz, Piedade Lalanda, Reis Leite e Vítor Melícias, estivemos então novamente juntos e em frutuoso diálogo aqui em Angra do Heroísmo –, recordo-o hoje com saudade, respeito e admiração institucional, gratidão académica e a muita estima que guardo da sua obra cultural, do seu pensamento intelectual e da sua própria pessoa.

E depois, por estes dias de memória e despedida, como dele tão profundamente disse Eduardo Lourenço, concorde-se ou não com tudo o que defendeu ou problematizou na Sociedade e na Igreja em Portugal, D. José da Cruz Policarpo, independentemente de ser um homem de Fé (ou talvez, digo eu, por isso mesmo) – “e ninguém ficará insensível à reiteração sentida e grave dela”... – foi um homem de escolha:

– “Da única que, para ele, recebe esse nome: a irreversível, aquela que só uma aposta transcendente explica e só o Amor legitima. Aquela que encerra alguém na redoma de Deus”!
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 22.03.2014):






















e "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 23.02.2014):