Um Leitor dos Sinais da Fé
1. No passado dia 12, vitimado por um aneurisma da aorta abdominal,
faleceu D. José da Cruz Policarpo, Cardeal e XVI Patriarca (Emérito) de Lisboa
(a cuja titularidade, assumida em 1998, resignara em 2011 por limite de idade).
Irmão mais velho dos nove filhos de um casal de agricultores, nascera a 26.02.1936
(Alvorninha, Caldas da Rainha, Leiria), tendo estudado Filosofia e Teologia em
Santarém, Almada e no famoso Seminário dos Olivais, onde depois seria Reitor (1970-1997).
– Sacerdote em 15.08.1961; director
(1961-66) do Seminário de Panafirme (Torres Vedras); Bispo (Auxiliar) de Lisboa
(1978) e Cardeal em 2001, José Policarpo foi Professor de Teologia na Universidade
Católica (UCP) desde 1970, Magnífico Reitor (1988/92 e 92/1996) e seu Magno
Chanceler desde 1996.
2. Em Roma, onde viveu (1966-70), licenciou-se em Teologia
Dogmática (com a Dissertação: Teologia
das Religiões Não-Cristãs, 1968) e doutorou-se (1970) pela mesma Pontifícia
Universidade Gregoriana com uma inovadora e importante Tese (“Sinais dos Tempos” – Génese Histórica e
Interpretação Teológica, publicada em 1971 pela Editora Sampedro), que é
reconhecidamente uma abordagem temática de “rara qualidade, tanto na parte positiva
como na parte sistemática”.
– Nesse último e referencial
trabalho, que mantém pleno interesse teológico, socio-pastoral, sociológico e
filosófico, aborda e refaz o seu autor tanto a génese histórica, com um duplo
critério de ordem cronológica e ideológica, da evolução da famoso Esquema XIII e da Gaudium et Spes,
quanto os principais aspectos da
obrigação de interpretar os sinais dos tempos: “justificação teológica
dessa possibilidade, à luz das relações entre salvação e história; os problemas
postos pelo discernimento desses sinais; as implicações práticas na vida da
Igreja e dos cristãos”.
De resto, aquele mesmo tema dos
“sinais dos tempos” – que vinha despertando reflexão em Portugal, como se
comprova nomeadamente pela edição, também pela Livraria Sampedro (Lisboa, 1969),
da obra A Igreja no Mundo de Hoje,
traduzida por Manuel do Carmo Ferreira e que incluía notáveis Comentários
àqueles Documentos, por conhecidos teólogos da craveira de Karl Rahner, Chenu,
Schillebeeckx, Dondeyne, Calvez, Dubarle, etc. –, continua, a todos os níveis, sendo
cada vez mais actual e urgente com vista ao seu discernimento e em simultâneo
tanto para uma observação objectiva
da História como para a sua real e
efectiva transformação libertadora, tal qual D. José Policarpo acentuara da
primeira:
– “A primeira condição para poder
interpretar os sinais dos tempos, é ter o sentido da objectividade histórica.
Todo o discernimento deve necessariamente começar por uma observação paciente e
uma análise rigorosa dos acontecimentos e fenómenos humanos, que é preciso
captar na sua objectividade de realidades terrestres. É preciso inventariar o
mais exaustivamente possível os fenómenos observáveis sociologicamente,
fenómenos que, sem serem necessariamente universais, sejam suficientemente
generalizados para poderem ser característicos de uma época. Este sentido da
objectividade histórica é absolutamente necessário para uma verdadeira
interpretação dos sinais dos tempos”...
3. Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (1999-02, 2002-05
e 2011-2014), tendo pertencido ainda ao Conselho Pontifício da Cultura,
Congregação de Educação Cristã e Conselho Pontifício para os Leigos, D. José
Policarpo era detentor de sólida Cultura teológica e filosófica, fé e inteligência da fé inabaláveis, solicitude
pastoral e capacidade de diálogo (recordo o seu notável diálogo crítico com
Eduardo Prado Coelho...), atributos bem comprovados nas causas, missões e
projectos que abraçou na Igreja e no nosso País, e cujos princípios e
delineamentos doutrinais, eclesiais, socioculturais e teórico-práticos (com
“verdadeiro valor teológico tanto para a teologia histórica como para a
teologia sistemática”) estiveram sempre bem marcados e assim foram logo
justamente reconhecidos em 1970 pelos seus orientadores jesuítas (R. Latourelle
e F. Pastor)!
– Por tudo isso, por ter sido meu
estimado Reitor na UCP e presidente da sua então Superior Congregação (à qual
pertenci, durante dois anos lectivos, em eleita representação dos colegas do nosso
Curso de Filosofia), mas depois também pelas memoráveis I Jornadas de Solidariedade Social dos Açores (1991) – nas quais,
entre outros, com Francisco Pimentel (então director regional da Segurança
Social e seu principal promotor), Adelaide Batista, Álamo Oliveira, António
Rego, Armando Leandro, Bagão Félix, Cinelândia Cogumbreiro e Sousa, Conceição
Estrela, Daniel de Sá, Fernanda Mendes, Fernando Campos, José Hermano Saraiva, Manuela
Eanes, Margarida Moniz, Piedade Lalanda, Reis Leite e Vítor Melícias, estivemos
então novamente juntos e em frutuoso diálogo aqui em Angra do Heroísmo –,
recordo-o hoje com saudade, respeito e admiração institucional, gratidão
académica e a muita estima que guardo da sua obra cultural, do seu pensamento
intelectual e da sua própria pessoa.
E depois, por estes dias de
memória e despedida, como dele tão profundamente disse Eduardo Lourenço,
concorde-se ou não com tudo o que defendeu ou problematizou na Sociedade e na
Igreja em Portugal, D. José da Cruz Policarpo, independentemente de ser um homem de Fé (ou talvez, digo eu, por isso mesmo) – “e ninguém ficará
insensível à reiteração sentida e grave dela”... – foi um homem de escolha:
– “Da única que, para ele, recebe
esse nome: a irreversível, aquela que só uma aposta transcendente explica e só
o Amor legitima. Aquela que encerra alguém na redoma de Deus”!
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 22.03.2014):