segunda-feira, março 24, 2014



A Regionalização da Fome


A Semana da Cáritas foi este ano motivada pelo tema “Unidos no Amor, Juntos contra a Fome”. Trata-se, sem dúvida, de um problema duplamente perspectivável, com o qual se pretendeu focar o crescente e dramático fenómeno da Fome!


Aliás, como aqui escrevemos há poucos meses – e nunca será de mais recordar... –, já na Mensagem do Papa destinada à Caritas Internacional e à “Campanha contra a fome no mundo”, lançada por esta organização e desenvolvida em unidade com as suas 164 filiadas em 200 países e territórios, fora salientado ser um escândalo mundial estarmos ainda – ou, talvez melhor, já hoje – perante a existência de quase mil milhões de pessoas que passam fome, sendo esta uma realidade à qual “não podemos virar a cara para o lado”, fingindo que não existe

Este flagelo – atingindo agora também largas camadas da classe média caída ou retornada a uma vida pobre e faminta de tudo – fora profeticamente abordado em macro-dimensão objectiva pelo médico, político e professor universitário brasileiro Josué de Castro na sua memorável Geografia da Fome (1946), reforçando-se aí a ideia de que a Fome não se resolve apenas, nem sequer principalmente, com “esmolas de caridade” nem com lenitivas “assistências sociais”, apesar destas serem tão necessárias e urgentes hoje como o foram em violentos tempos de guerra, ou durante séculos de opressivo subdesenvolvimento, vil exploração e opressiva penúria!


– Esse livro marcou indelevelmente gerações de homens de Estado e políticos de Consciência, tal como Adriano Moreira que recentemente tornou a afirmar a propósito de um oportuno inquérito da RTP sobre livros e leituras marcantes ter sido a obra de Josué de Castro aquela que escolheria entre várias, na medida em que “mais tem a ver com a situação trágica, que se agrava diariamente, nesta Europa que governou o mundo, e no país que é nosso e sofre as consequências do novo-riquismo que se foi sobrepondo às diferenças ideológicas invocadas durante meio século de Guerra Fria”, – citando de seguida um Nobel de Literatura (Pearl Buck) que analogamente confessara assim ser aquele “o livro mais encorajador, mais esperançoso e mais cordial” que já lera em toda a sua vida: “ler este livro tão expressivo, tão claro em seu pensamento, tão racional na exposição dos factos científicos, tão sábio em suas sugestões acerca de novas formas de conhecimento, é encontrar uma renovada esperança para a humanidade”.

 “ Todavia – mais ressaltou Adriano Moreira, remetendo também para as investigações do teólogo Hans Kung e para a chamada “nova evangelização” do Papa Francisco – nesta crise que globalmente se agrava (...), não pode ignorar-se a responsabilidade que governanças ineficazes e mal esclarecidas assumiram pela situação a que a população, com dimensão crescente no globo, agora também entre os ocidentais, foi conduzida, porque as vozes encantatórias capazes de movimentar o esforço cívico das sociedades civis foram caladas por uma teologia de mercado sem paradigma ético reconhecido”.
E em Portugal, concluía aquele distinto professor em consequência, perante as “notícias sobre a validade da ciência em que se baseia a imposta política de austeridade, e a fadiga tributária que atinge a sociedade civil, convém não esquecer que anteriores às obrigações perante a troika existem sérias obrigações internacionais a que o Estado português também está obrigado”...

– Manifestação pois de um profundo e escandaloso desequilíbrio, quando não de absoluta negação ou desfalque dos mais elementares Direitos do Homem, a Fome, tal como a Pobreza (mas ultrapassando-a no grau de desumanidade e desumanização que revela e concretiza), não é todavia já um acontecimento afastado de nós, visível ou audível como lancinante grito ou eco à distância de continentes, paragens inóspitas, áridas zonas vagamente tribais, ou em metrópoles empestadas, longínquos redutos e periferias de si mesmas nos subúrbios da Terra. (1)

 

Mas de facto, não é esta a sofrida realidade, nem a feição daquilo que nos atinge de perto, qual calvário de amarguras e carências à porta, nas ilhas e redondezas das nossas habitações e habituações..., pese embora o que não há muito tempo vimos e ouvimos na ALRAA ainda a este propósito da Fome, da problemática do rendimento escolar dos estudantes açorianos e da relação que o processo de aprendizagem e desempenho dos nossos alunos possa ter (como é mais do que sabido que efectivamente também tem!) com a problemática dos hábitos de alimentação e das respectivas e integrantes possibilidades e práticas de nutrição.


– E isto, como então salientei, apesar da seriedade deste mesmo tema da Fome ter podido constituir uma boa oportunidade para se ter ali mostrado mais dignidade, competência, compostura e até mesmo alguma exigível fidelidade ideológica e ética, perante fenómenos e factos cada vez mais indesmentíveis (conquanto complexos), e perante princípios e valores intocáveis, cujo esquecimento ou falsificação não podem, em circunstância alguma, continuar a ser levianamente aceites, quando não pura e simplesmente subtraídos à evidência gritante também nos Açores, sejam lá quais forem os defensivos ou agressivos pretextos trazidos à riça político-partidária, institucional ou outra de parecido e intencional jaez...


Ora nos Açores – e porque a situação é crescentemente alarmante, como, entre outros tem sido bem mostrado pela Cáritas diocesana (na Terceira e em S. Miguel), e pelos sempre tão frontais testemunhos de Mons. Weber Machado –, na passagem destes dias muitas foram as campanhas, debates, programas e justas denúncias a que tornámos a assistir, sendo que tais acções de sensibilização foram oportunidade para novos alertas e revelações, apresentação de dados estatísticos e comprovação de degradantes e vergonhosos impasses corajosamente trazidos a maior visibilidade, infelizmente porém tantas vezes por entre ignorâncias políticas intencionais, cumplicidades sistemáticas e escamoteamentos socio-estruturais, alguns até aceites com complacência cúmplice, quietação espiritual, alienação ética, cegueira histórica e desculpabilização religiosa, comunicacional e socialmente acomodadas!
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(1) Segundo as indicações do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (EU-SILC), realizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) em 2013 sobre rendimentos do ano anterior, 18,7% das pessoas estavam em risco de pobreza em 2012, mais 0,8 p.p. do que em 2011 (17,9%).



A taxa de risco de pobreza das famílias com crianças dependentes foi de 22,2% em 2012, aumentando novamente a desvantagem relativa face ao valor para o total da população residente. As taxas de risco de pobreza mais elevadas foram estimadas para os agregados constituídos por um adulto com pelo menos uma criança dependente (33,6%), por dois adultos com três ou mais crianças (40,4%) e por 3 ou mais adultos com crianças (23,7%), que ao longo da série enfrentam pela primeira vez um risco de pobreza superior ao das pessoas que vivem sós (21,7%).
O risco de pobreza para a população em situação de desemprego foi de 40,2% em 2012, com um aumento de 1,9 p.p. face ao ano anterior, e a proporção da população com menos de 60 anos que vivia em agregados familiares com intensidade laboral per capita muito reduzida aumentou 2,0 p.p., de 10,1% para 12,2% em 2012.
A assimetria na distribuição dos rendimentos entre os grupos da população com maiores e menores recursos manteve a tendência de crescimento verificada nos últimos anos.

Cf. texto integral do Relatório do INE, aqui:

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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 25.03.2014):