A Regionalização da Fome
A Semana da Cáritas foi este ano
motivada pelo tema “Unidos no Amor, Juntos contra a Fome”. Trata-se, sem
dúvida, de um problema duplamente
perspectivável, com o qual se pretendeu focar o crescente e dramático fenómeno da Fome!
Aliás, como aqui escrevemos há
poucos meses – e nunca será de mais recordar... –, já na Mensagem do Papa
destinada à Caritas Internacional e à “Campanha
contra a fome no mundo”, lançada por esta organização e desenvolvida em unidade
com as suas 164 filiadas em 200 países e territórios, fora salientado ser um escândalo mundial estarmos ainda – ou, talvez melhor, já hoje – perante a existência de quase
mil milhões de pessoas que passam fome, sendo esta uma realidade à qual
“não podemos virar a cara para o lado”, fingindo
que não existe…
Este flagelo – atingindo agora
também largas camadas da classe média caída ou retornada a uma vida pobre e faminta de tudo – fora
profeticamente abordado em macro-dimensão objectiva pelo médico, político e
professor universitário brasileiro Josué de Castro na sua memorável Geografia da Fome (1946), reforçando-se
aí a ideia de que a Fome não se resolve apenas,
nem sequer principalmente, com
“esmolas de caridade” nem com lenitivas “assistências sociais”, apesar destas
serem tão necessárias e urgentes hoje
como o foram em violentos tempos de guerra, ou durante séculos de opressivo
subdesenvolvimento, vil exploração e opressiva penúria!
– Esse livro
marcou indelevelmente gerações de homens de Estado e políticos de Consciência,
tal como Adriano Moreira que recentemente tornou a afirmar a propósito de um
oportuno inquérito da RTP sobre livros e
leituras marcantes ter sido a obra de Josué de Castro aquela que escolheria
entre várias, na medida em que “mais tem a ver com a situação trágica, que se
agrava diariamente, nesta Europa que governou o mundo, e no país que é nosso e
sofre as consequências do novo-riquismo que se foi sobrepondo às diferenças
ideológicas invocadas durante meio século de Guerra Fria”, – citando de seguida
um Nobel de Literatura (Pearl Buck) que analogamente confessara assim ser
aquele “o livro mais encorajador, mais esperançoso e mais cordial” que já lera
em toda a sua vida: “ler este livro tão expressivo, tão claro em seu
pensamento, tão racional na exposição dos factos científicos, tão sábio em suas
sugestões acerca de novas formas de conhecimento, é encontrar uma renovada
esperança para a humanidade”.
E em Portugal, concluía
aquele distinto professor em consequência, perante as “notícias sobre a
validade da ciência em que se baseia a imposta política de austeridade, e a
fadiga tributária que atinge a sociedade civil, convém não esquecer que
anteriores às obrigações perante a troika existem sérias obrigações
internacionais a que o Estado português também está obrigado”...
– Manifestação pois de um profundo e escandaloso desequilíbrio,
quando não de absoluta negação ou desfalque
dos mais elementares Direitos do Homem, a Fome, tal como a Pobreza (mas ultrapassando-a
no grau de desumanidade e desumanização
que revela e concretiza), não é todavia já um acontecimento afastado de nós,
visível ou audível como lancinante grito ou eco à distância de continentes,
paragens inóspitas, áridas zonas vagamente tribais, ou em metrópoles
empestadas, longínquos redutos e periferias de si mesmas nos subúrbios da
Terra. (1)
Mas de facto, não é esta a
sofrida realidade, nem a feição daquilo que nos atinge de perto, qual calvário de amarguras e carências à porta, nas ilhas e
redondezas das nossas habitações e habituações..., pese embora o que não há
muito tempo vimos e ouvimos na ALRAA ainda a este propósito da Fome, da
problemática do rendimento escolar
dos estudantes açorianos e da relação que o processo
de aprendizagem e desempenho dos nossos alunos possa ter (como é mais do
que sabido que efectivamente também
tem!) com a problemática dos hábitos de
alimentação e das respectivas e integrantes possibilidades e práticas de nutrição.
– E isto, como então salientei, apesar
da seriedade deste mesmo tema da Fome ter podido constituir uma boa
oportunidade para se ter ali mostrado mais dignidade, competência, compostura e
até mesmo alguma exigível fidelidade
ideológica e ética, perante fenómenos
e factos cada vez mais indesmentíveis
(conquanto complexos), e perante princípios
e valores intocáveis, cujo esquecimento
ou falsificação não podem, em
circunstância alguma, continuar a ser levianamente aceites, quando não pura e
simplesmente subtraídos à evidência gritante também nos Açores, sejam lá quais
forem os defensivos ou agressivos pretextos trazidos à riça
político-partidária, institucional ou outra de parecido e intencional jaez...
Ora nos Açores – e porque a
situação é crescentemente alarmante, como, entre outros tem sido bem mostrado
pela Cáritas diocesana (na Terceira e em S. Miguel), e pelos sempre tão
frontais testemunhos de Mons. Weber Machado –, na passagem destes dias muitas
foram as campanhas, debates, programas e justas denúncias a que tornámos a
assistir, sendo que tais acções de
sensibilização foram oportunidade para novos
alertas e revelações, apresentação de dados estatísticos e comprovação de degradantes
e vergonhosos impasses corajosamente trazidos
a maior visibilidade, infelizmente porém tantas vezes por entre ignorâncias
políticas intencionais, cumplicidades sistemáticas e escamoteamentos socio-estruturais,
alguns até aceites com complacência cúmplice, quietação espiritual, alienação
ética, cegueira histórica e desculpabilização religiosa, comunicacional e
socialmente acomodadas!
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(1) Segundo as indicações do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (EU-SILC), realizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) em 2013 sobre rendimentos do ano anterior, 18,7% das pessoas estavam em risco de pobreza em 2012, mais 0,8 p.p. do que em 2011 (17,9%).
A taxa de risco de pobreza das famílias com crianças dependentes foi de 22,2% em 2012, aumentando novamente a desvantagem relativa face ao valor para o total da população residente. As taxas de risco de pobreza mais elevadas foram estimadas para os agregados constituídos por um adulto com pelo menos uma criança dependente (33,6%), por dois adultos com três ou mais crianças (40,4%) e por 3 ou mais adultos com crianças (23,7%), que ao longo da série enfrentam pela primeira vez um risco de pobreza superior ao das pessoas que vivem sós (21,7%).
Cf. texto integral do Relatório do INE, aqui:
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(1) Segundo as indicações do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (EU-SILC), realizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) em 2013 sobre rendimentos do ano anterior, 18,7% das pessoas estavam em risco de pobreza em 2012, mais 0,8 p.p. do que em 2011 (17,9%).
A taxa de risco de pobreza das famílias com crianças dependentes foi de 22,2% em 2012, aumentando novamente a desvantagem relativa face ao valor para o total da população residente. As taxas de risco de pobreza mais elevadas foram estimadas para os agregados constituídos por um adulto com pelo menos uma criança dependente (33,6%), por dois adultos com três ou mais crianças (40,4%) e por 3 ou mais adultos com crianças (23,7%), que ao longo da série enfrentam pela primeira vez um risco de pobreza superior ao das pessoas que vivem sós (21,7%).
O
risco de pobreza para a população em situação de desemprego foi de 40,2% em
2012, com um aumento de 1,9 p.p. face ao ano anterior, e a proporção da
população com menos de 60 anos que vivia em agregados familiares com
intensidade laboral per capita muito reduzida aumentou 2,0 p.p., de 10,1% para
12,2% em 2012.
A
assimetria na distribuição dos rendimentos entre os grupos da população com
maiores e menores recursos manteve a tendência de crescimento verificada nos
últimos anos.
Cf. texto integral do Relatório do INE, aqui:
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 25.03.2014):