Da Ideação Suicidária
ou A Degeneração do Humor
ou A Degeneração do Humor
1. Não é fácil gerar e gerir o Humor, fenómeno complexo e sério
que – tal como o Riso, o Cómico, a Ironia e outras manifestações próximas dele
e das suas variadas facetas e configurações – tem sido objecto de aprofundados
estudos temáticos.
– De resto, para além de ser uma manifestação não só mas especialmente humana, cultural e psicossocialmente
situada, de sentimentos, percepções estéticas e juízos de valor sobre factos, pessoas,
tipos, situações e comportamentos reais, ficcionais, físicos ou imaginários, que
são transmissíveis ou transmitidos sob múltiplas
formas de representação discursiva e simbólica (verbal, literária e gestual),
o Humor e as suas categorias ou circunstâncias de exercício retórico,
narrativo, teatral e iconográfico foi visto em conhecidas e tão diversas
abordagens como as que foram desenvolvidas pelos filósofos, escritores,
dramaturgos, psicólogos e comediantes clássicos, e mais recentemente ainda, a
título de exemplos que apenas saliento, Bergson (numa obra sobre “a
significação do cómico”), Darwin (que o estudou na perspectiva “das emoções no
homem e nos animais”), ou por Freud e Lacan que o inseriram no quadro
psicanalítico e intersticial da linguagem e das suas “contaminações” por
relação ao inconsciente, ao desejo, à sexualidade, ao poder, etc., como no caso
dos ditos espirituosos (“mots
d’esprit”), chistes, anedotas, cantigas, graças ou dichotes...
Por outro lado, toda a trama expressiva e crítica que o Humor e
suas variantes paradigmáticas contêm e veiculam estão bem presente no folclore
dos povos e culturas, disso até sendo amostra muita rica o caso dos dizeres das
nossas Velhas (que abordei em Heranças da Terra – Leituras de Etnografia e
Outros Textos), enquanto modalidade genericamente filiada numa tradição
remontável às Cantigas de Escárnio e Maldizer.
E é assim, conforme mais salientei,
serem intenção ou intencionalidade de As
Velhas a sátira de casos, vivências e situações individuais ou comunitárias
transpostas para uma ou várias insólitas
ocorrências aonde um certo teatro de costumes, gestos e falas é sintetizado
numa relação ou tendencial relacionamento entre pessoas (homens e mulheres idosas),
desenhando-se aí uma dupla cena-padrão envolvendo um jogo imagético, libidinal e amoroso de absurdo e de desejo, sendo também o
mesmo suportado por uma lógica de duplo
sentido que efectua uma transgressão
do registo normalizado das morais e das linguagens socialmente avalizadas e
toleradas...
2. Vem isto também a propósito de um programa – intitulado Melhor do que Falecer – da autoria de
Ricardo Araújo Pereira (RAP), figurinha estelar do nacional-humorismo em voga e
alta cotação nos canais da TV que encharca o País com as suas criatividades espirituosas...
A dita peça – que é para arrastar
por três meses... –, terá a duração de longos e penosos 5 minutos, sendo
transmitida em horário nobre, a seguir ao Telejornal do Canal que lhe dará guarida,
tal como já começou a acontecer na passada 2.ª-feira com uma inacreditável e repugnante encenação,
enredada numa lengalenga barata mas insinuante e sugestiva – e assim irresponsavelmente indutora, propedêutica, quando
não quase apologética! –, de uma série de transes suicidários, documentados, à laia de reportagem
sensacionalista (trágica, porém!),
com uma série de saltos para a morte a
partir de uma varanda de um prédio citadino, de onde, acompanhados de gritos em
fundo, jovens se atiravam, invocando, ou sendo-lhes subliminar ou abertamente relevados desesperos, desesperanças e
outras pulsões violentas e
auto-destrutivas, que os levava a projectarem-se filmicamente no vazio,
para acabarem por cair, corpos mortos,
no chão da rua!
– Ora aquela cena é tão destituída de qualquer réstia de sentido de
humor, ou de outro qualquer sentido
do que quer que seja para além da sua inconsciência, ignorância e
leviandade, que é difícil encontrar adjectivos para classificá-la até ao osso
da respectiva imprudência comunicacional e televisiva, menoridade racional e brutal
demência ética!
Porém – e para já não referirmos
outras exemplares e bem duvidosas graçolas antigas do tal ido “Gato Fedorento”,
como as de um bolçado escarro sobre as devoções marianas em Fátima, o
achincalho ao pouco alfabetizado candidato a autarca açoriano ou outros pretendidos
catalisadores de risota ou gargalhada em estúdio, com chocarrices pegadas nos
equívocos desses pequenos mitos untados nas vascas da mediocridade nacional
aonde se manifestaram e persistem desalmadas e quiçá impiedosas lógicas de violência simbólica
e do acanalhamento cívico, moral
e espiritual que a nossa burgessa e fútil classe político-partidária e
seus actores económicos e agentes mediático-culturais fomentam sem apelo nem
agravo!
– Agora, porém, vinha a dizer, temos
essa inacreditável encenação de ideação suicida, (apologia e motivação
suicidária!) que é tão mais grave e profundamente celerada quanto faz evocar no imaginário colectivo
dolorosas e dramáticas cenas do quotidiano do mundo e da nossa própria Pátria,
envolvendo jovens, crianças, pais e mães, toxicodependentes e outros seres humanos apenas mas fatalmente
tocados pela fascinante atracção do vazio
e pela tentação do nada de si e do Outro, à beira dos precipícios todos que
levam à aniquilação última da Vida e
da Esperança!
Por tudo isto – e pelo que ainda
fica para ser dito depois – é que esse programa (talvez não por acaso guardado pela sombra estilizada da gadanha da
Morte...) – seja afinal e para além do mais, sinal e prova provada não só da degenerescência do Humor dos supostos
criativos e apalhaçados humoristas lusos, quanto da degeneração e falecimento
total da responsabilidade de Portugal e dos Portugueses perante todos os
que, de um modo ou de outro, conivente e complementarmente, lhes assassinam o Futuro,
vendendo-lhes “artístico-humoristicamente” (?), sem graça nem alegria nem amor,
a desgraça triste e angustiada do próprio falecimento
do corpo e da alma na alienação do Presente...
Angra do Heroísmo, 17 de Abril de 2014
Angra do Heroísmo, 17 de Abril de 2014
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Publicado em "Diário dos Açores (Ponta Delgada, 18.04.2014):
Azores Digital:
e "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 27.04.2014):