sexta-feira, abril 18, 2014


Da Ideação Suicidária
ou A Degeneração do Humor


 1. Não é fácil gerar e gerir o Humor, fenómeno complexo e sério que – tal como o Riso, o Cómico, a Ironia e outras manifestações próximas dele e das suas variadas facetas e configurações – tem sido objecto de aprofundados estudos temáticos.

– De resto, para além de ser uma manifestação não só mas especialmente humana, cultural e psicossocialmente situada, de sentimentos, percepções estéticas e juízos de valor sobre factos, pessoas, tipos, situações e comportamentos reais, ficcionais, físicos ou imaginários, que são transmissíveis ou transmitidos sob múltiplas formas de representação discursiva e simbólica (verbal, literária e gestual), o Humor e as suas categorias ou circunstâncias de exercício retórico, narrativo, teatral e iconográfico foi visto em conhecidas e tão diversas abordagens como as que foram desenvolvidas pelos filósofos, escritores, dramaturgos, psicólogos e comediantes clássicos, e mais recentemente ainda, a título de exemplos que apenas saliento, Bergson (numa obra sobre “a significação do cómico”), Darwin (que o estudou na perspectiva “das emoções no homem e nos animais”), ou por Freud e Lacan que o inseriram no quadro psicanalítico e intersticial da linguagem e das suas “contaminações” por relação ao inconsciente, ao desejo, à sexualidade, ao poder, etc., como no caso dos ditos espirituosos (“mots d’esprit”), chistes, anedotas, cantigas, graças ou dichotes...
  

Por outro lado, toda a trama expressiva e crítica que o Humor e suas variantes paradigmáticas contêm e veiculam estão bem presente no folclore dos povos e culturas, disso até sendo amostra muita rica o caso dos dizeres das nossas Velhas (que abordei em Heranças da Terra – Leituras de Etnografia e Outros Textos), enquanto modalidade genericamente filiada numa tradição remontável às Cantigas de Escárnio e Maldizer.

E é assim, conforme mais salientei, serem intenção ou intencionalidade de As Velhas a sátira de casos, vivências e situações individuais ou comunitárias transpostas para uma ou várias insólitas ocorrências aonde um certo teatro de costumes, gestos e falas é sintetizado numa relação ou tendencial relacionamento entre pessoas (homens e mulheres idosas), desenhando-se aí uma dupla cena-padrão envolvendo um jogo imagético, libidinal e amoroso de absurdo e de desejo, sendo também o mesmo suportado por uma lógica de duplo sentido que efectua uma transgressão do registo normalizado das morais e das linguagens socialmente avalizadas e toleradas...

2. Vem isto também a propósito de um programa – intitulado Melhor do que Falecer – da autoria de Ricardo Araújo Pereira (RAP), figurinha estelar do nacional-humorismo em voga e alta cotação nos canais da TV que encharca o País com as suas criatividades espirituosas...


A dita peça – que é para arrastar por três meses... –, terá a duração de longos e penosos 5 minutos, sendo transmitida em horário nobre, a seguir ao Telejornal do Canal que lhe dará guarida, tal como já começou a acontecer na passada 2.ª-feira com uma inacreditável e repugnante encenação, enredada numa lengalenga barata mas insinuante e sugestiva – e assim irresponsavelmente indutora, propedêutica, quando não quase apologética! –, de uma série de transes suicidários, documentados, à laia de reportagem sensacionalista (trágica, porém!), com uma série de saltos para a morte a partir de uma varanda de um prédio citadino, de onde, acompanhados de gritos em fundo, jovens se atiravam, invocando, ou sendo-lhes subliminar ou abertamente relevados desesperos, desesperanças e outras pulsões violentas e auto-destrutivas, que os levava a projectarem-se filmicamente no vazio, para acabarem por cair, corpos mortos, no chão da rua!

– Ora aquela cena é tão destituída de qualquer réstia de sentido de humor, ou de outro qualquer sentido do que quer que seja para além da sua inconsciência, ignorância e leviandade, que é difícil encontrar adjectivos para classificá-la até ao osso da respectiva imprudência comunicacional e televisiva, menoridade racional e brutal demência ética!


 3. Já não é a primeira vez que tamanhos experimentalismos recebem acolhimento e encómios em OCS lisboetas, sendo até tidos por coqueluche e supostos modelos de criatividade humorística aplicada ao actual campo da vida sociopolítica do proverbial e ajardinado “rectângulo” do massificado Zé Povinho, podendo mesmo dizer-se de tal esterco televisivo o que aqui se dizia, há perto de cinco anos atrás, a propósito de outras façanhas de igual jaez e grupal fedorência de RAP&Cia, porquanto sempre “há humor e humores” conforme os talentos, virtudes e níveis culturais em cena ou pantalha (desde os ditos à Charlot, Cantiflas, Solnado ou Badaró, ao ordinário à Herman, ao inglês de Mr. Bean ou Yes Minister, até ao Allo! Allo!, ao Gendarme de Funès, ao brasileiro do Gordo ou às sitcoms norte-americanas, sem esquecer os Palhaços dos Circos e as nossas populares Danças e Bailinhos de Carnaval, mesmo sem Ratão em audiovisual…). 

Porém – e para já não referirmos outras exemplares e bem duvidosas graçolas antigas do tal ido “Gato Fedorento”, como as de um bolçado escarro sobre as devoções marianas em Fátima, o achincalho ao pouco alfabetizado candidato a autarca açoriano ou outros pretendidos catalisadores de risota ou gargalhada em estúdio, com chocarrices pegadas nos equívocos desses pequenos mitos untados nas vascas da mediocridade nacional aonde se manifestaram e persistem desalmadas e quiçá impiedosas lógicas de violência simbólica  e do acanalhamento cívico, moral e espiritual que a nossa burgessa e fútil classe político-partidária e seus actores económicos e agentes mediático-culturais fomentam sem apelo nem agravo!


– Agora, porém, vinha a dizer, temos essa inacreditável encenação de ideação suicida, (apologia e motivação suicidária!) que é tão mais grave e profundamente celerada quanto faz evocar no imaginário colectivo dolorosas e dramáticas cenas do quotidiano do mundo e da nossa própria Pátria, envolvendo jovens, crianças, pais e mães, toxicodependentes e outros seres humanos apenas mas fatalmente tocados pela fascinante atracção do vazio e pela tentação do nada de si e do Outro, à beira dos precipícios todos que levam à aniquilação última da Vida e da Esperança!


Por tudo isto – e pelo que ainda fica para ser dito depois – é que esse programa (talvez não por acaso guardado pela sombra estilizada da gadanha da Morte...) – seja afinal e para além do mais, sinal e prova provada não só da degenerescência do Humor dos supostos criativos e apalhaçados humoristas lusos, quanto da degeneração e falecimento total da responsabilidade de Portugal e dos Portugueses perante todos os que, de um modo ou de outro, conivente e complementarmente, lhes assassinam o Futuro, vendendo-lhes “artístico-humoristicamente” (?), sem graça nem alegria nem amor, a desgraça triste e angustiada do próprio falecimento do corpo e da alma na alienação do Presente...

Angra do Heroísmo, 17 de Abril de 2014
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Publicado em "Diário dos Açores (Ponta Delgada, 18.04.2014):





































Azores Digital:



















e "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 27.04.2014):