Bibliotecários da Humanidade
Publicado em Portugal nos finais
do ano passado mas já na sua 3.ª edição (Lisboa, 2014), A Bibliotecária de Auschwitz é um livro da autoria de António G.
Iturbe premiado a nível mundial e que tem granjeado merecida apreciação
positiva, justificando mesmo, no “DN” a qualificação de “uma das leituras mais
marcantes de todo o ano [2013]”, ou não se tratasse, de facto, como a
respectiva editora o apresenta, de “um romance avassalador, hipnotizante, que
toca o coração dos leitores”, baseado na história verídica de Dita Dorachova/Adlerova
– então uma jovem checa de 14 anos, bibliotecária do Bloco 31 de Auschwitz-Birkenau
–, com quem o autor teve agora, passados tantos anos, oportunidade de falar,
para poder assim justamente resgatar do esquecimento “uma das mais comoventes
histórias de heroísmo cultural”.
A obra – rigorosamente
documentada e cuja narrativa ultrapassa a mera ficção – conta de modo muito
realista e pungente a vida naquele campo de concentração e extermínio, a suprema
brutalidade dos guardas SS, dos oficiais alemães e comandantes militares e do
sinistro e sádico médico Josef Mengele, cujas acções são contrapostas à coragem
sofredora, à esperançosa audácia e à espantosa capacidade de resistência de
Dita e de Fredy Hirsh (o instrutor judeu do Bloco 31), cujas vidas passadas e
infância são intercaladas na narrativa.
– A história foi inicialmente
recolhida por Iturbe no livro A
Biblioteca à Noite do nosso já conhecido, e aqui em Crónica anterior também
abordado, Alberto Manguel, conforme ele próprio confessou em Entrevista ao
jornal “Público”, revelando o percurso feito e as respectivas referências seguidas:
“Alberto Manguel escreveu um Dicionário de Lugares Imaginários,
mas esta obra é sobre bibliotecas que existiram de facto. É verdade que me
surpreendeu muito quando, em poucas linhas, ele explica, que num barracão de
Auschwitz – o lugar mais terrível que existiu –, conseguiram criar aquela que
terá sido a biblioteca pública mais pequena do mundo, com apenas oito volumes.
Mas, sim, acreditei completamente, porque o dizia Alberto Manguel e porque vi
na bibliografia a fonte onde ele tinha ido buscar a informação, que era outro
livro. Li este livro, com artigos sobre temas variados relacionados com
Auschwitz, e havia umas 15 páginas sobre o campo familiar”. E assim, logo a
abrir A Bibliotecária de Auschwitz, o
autor cita Manguel:
– “Enquanto durou, o Bloco 31 (no
campo de extermínio de Auschwitz ) albergou quinhentas crianças, vários
prisioneiros que tinham sido nomeados ‘conselheiros’ e, apesar de toda a
vigilância a que estava sujeito e contra todas as probabilidades, uma
biblioteca infantil clandestina. Era minúscula: consistia em apenas oito
livros, entre os quais Uma Breve História
do Mundo, de H.G. Wells, um livro de texto russo e outro de geometria
analítica [...]. No fim de cada dia, os livros, com outros tesouros, como
medicamentos ou alguma comida que houvesse, eram confiados a uma das meninas
mais velhas, que tinha o encargo de escondê-los todas as noites num lugar
diferente”... Porém a esses, Iturbe acrescenta ainda, real e
paradigmaticamente, entre alguns outros mais que ali existiram, um livro de
Freud (Novos Caminhos da Terapia
Psicanalítica), As Aventuras do Bravo
Soldado Svejk de Jaroslav Hasek, um Atlas
Universal, o Conde de Montecristo
de Dumas, todos constituindo afinal um sinal de Esperança e um ícone de
Humanidade, naquele laboratório de morte
e ignomínia:
– “Dita olhava os livros, mas
sobretudo acariciava-os. Estavam rasgados e riscados, manuseados, com
cercaduras avermelhadas de humidade, alguns deles mutilados... mas eram um
tesouro. E a fragilidade tornava-os ainda mais valiosos. Apercebia-se de que
tinha de cuidar daqueles livros como se fossem velhinhos sobreviventes de uma
catástrofe porque tinham uma importância crucial: sem eles, podia perder-se a
sabedoria de séculos de civilização. A geografia, que nos mostrava como era o
mundo; a arte da literatura, que multiplicava por dezenas a visa do leitor, o
progresso científico, que a matemática representava; a história, que nos
recordava de onde vínhamos e talvez nos ajudasse a decidir para onde deveríamos
ir; a gramática, que permitia urdir os fios da comunicação entre as pessoas...
mais do que uma bibliotecária, a partir daquele dia converteu-se em enfermeira
de livros”.
Entretanto, numa longa e sugestiva Entrevista recente ao jornalista
brasileiro Herbert Moraes, a própria Dita Kraus pronunciou-se comovidamente
sobre o romance de António Iturbe, que todavia ainda não lera, afirmando que,
apesar das reservas que o mesmo lhe colocava pessoalmente (“Primeiramente, porque
me qualifica como heroína”), lhe diziam ser “um bom livro. Muito bem escrito.
Daqueles que não se consegue parar de ler”...
– E tinha certamente razão! Até porque, apesar daquilo que tão
tragicamente escreveu Adorno, depois de Auschwitz e de todos os Holocaustos da
História, ou por isso mesmo, é que embora não seja mais possível toda e
qualquer forma de Poesia inocente,
certamente que caberá sempre à Literatura e ao Pensamento livres e comovidos, tentar impedir que eles se repitam às mãos de
todos aqueles para quem a Humanidade vale tanto como um “lodaçal de corpos onde
os vivos e os mortos não se distinguem, caídos por terra...”.
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 05.04.2014):
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RTP-Açores::
Outra versão em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 05.04.2014):