A Trincheira das Razões
1. Coordenado por Fátima Campos Ferreira, o último
Programa “Prós e Contras” sobre Tauromaquia, suscitou justificado interesse e provocou díspares comentários antológicos, de entre os quais – para além da
retoma do assunto em Blogues de incidência permanente, como o “Arco de
Almedina” – chamou-me mais natural e especialmente a atenção aquele que o
sacerdote jesuíta João Vila-Chã publicou no Facebook e que adiante, para devida
consulta, reproduzirei na íntegra.
2. Ora apesar de algumas perspectivas e “axiomas” ali
defendidos (ou omissos...), que antes deviam
ter sido dados como “questões disputáveis” (v.g. os exigentes problemas filosóficos e jurídicos do
“estatuto ontológico”, do “princípio da igualdade”, “do limite da senciência”,
dos “direitos dos animais” e dos “deveres humanos” para com eles; os processos rituais e os envolvimentos institucionais e
religiosos no fenómeno taurino; a não-referência à variedade de modelos “socioculturais” e à discrepância de manifestações que a “festa brava” assume (caso das
“touradas à corda” nos Açores); o impacto
do espectáculo e seu inerente
carácter violento na psicologia
colectiva e individual, na memória e nos imaginários etnográficos e
histórico-políticos civilizacionalmente sempre situados em sociedades dissemelhantes; a dimensão antropológica,
estética e ética dos valores também ali em
confronto e conflito; a disparidade
contextual de atitudes, acções e discursos dos distintos intervenientes no habitus e no campo tauromáquico; o papel dos técnicos, veterinários e cientistas
sociais na avaliação global e integrada
dos capitais simbólicos e das práticas constituintes da “taurinidade”;
a dimensão ecológica, comercial, profissional e empresarial da tauro-indústria; a vasta e conhecida representação
literário-ficcional e a criticamente
já bem qualificada produção ensaística
sobre a corrida e a decorrente e indeclinável abordagem filosófica e pluridisciplinar do psiquismo, do binómio
dor/sofrimento, da consciência e da bio-sensitividade animal, inseparáveis da
compreensão profunda da estrutura
metafísica e ético-espiritual de todos os actos existenciais humanos, etc., etc.)...
– Pese embora tudo isso (que a filósofos não pode escapar
nunca!), ao que vimos e infelizmente ali faltou – dizia –, é de registar
todavia a pertinência e seriedade
desta reflexão de Vila-Chã, na medida em logrou sugerir (com a pertinente
introdução da figura do “bouc-emissaire”, como sabemos, aplicável tanto a
partir da hermenêutica bíblica quanto em articulação, neste âmbito temático,
com as teses de Frazer e de Girard, por exemplo...) um óptimo contributo para a
continuação sistemática de um debate ainda em aberto, sobre um “tema
muito polémico” e mais complexo do que aparenta, tal como aliás ficou
demonstrado nas contendas entre a plateia e os escolhidos membros dos painéis –
presumidos representantes oficiosos
de lides e sortes pró e anti-tourada...
–, porém também nos limitadores (e
intencionais?) balanceamentos revelados
pela moderadora, que aparentou, neste caso, não ter compulsado devidamente a difícil matéria crítica ensarilhada nos
escorregadios terrenos, faenas e trincheiras de tão passionais arenas!
3. O texto do Prof. Vila-Chã – antigo director da nossa
saudosa e estimável Revista Portuguesa de
Filosofia –, cuja integral e
criteriosa leitura recomendo, acentuando porém que foi (indicativamente
até...) escrito antes da transmissão
do “Prós e Contras”, é do seguinte teor:
– A
tourada é, desde há anos a esta parte, um tema muito polémico. Em Portugal e
não só. Estou informado de que o «Prós & Contras» desta semana será
dedicado a esta temática. Naturalmente, desejo à
jornalista Fátima Campos Ferreira a melhor moderação possível. Imagino de
antemão a emoção que vai acontecer nesse programa, e (talvez) ainda bem. Mas
também espero que ali se façam ouvir as vozes da razão. E estas, claro, podem
ser várias. Pessoalmente, nunca gostei de touradas e só pela televisão, quando
era menino, vi um ou outro episódio de cariz tauromáquico. Ainda me lembro de
algumas impressionantes acrobacias por parte dos cavaleiros, da escalofriante
coragem dos forcados, e muito menos esqueci um ou outro acidente que se deu na
arena e a que pela televisão, sem querer, assisti. Recordo touros ofegantes e
alguns chapéus no ar. Tenho presente actos humanos de enorme risco e coragem,
acrobacias (quase) impensáveis, o aplauso das (pequenas) multidões.
Hoje, porém, mesmo sem ver o «Prós & Contras»
desta noite, tenho mais que tudo presente dois axiomas que julgo deverem estar
no centro da nossa atenção quando reflectimos sobre a nossa relação com o mundo
dos animais, e que formulo em termos como os seguintes: os animais não são
pessoas, mas não devem ser maltratados; os animais não têm direitos, mas
perante eles nós temos obrigações.
Em si mesmas, as touradas são fenómenos sociais, e
rituais, muito antigos, com origens na nossa história comum mais remota. Uma
vez em Creta, recordo ter visto uma impressionante representação,
multimilenária, do confronto que na tourada se dá entre o homem e o animal. Do
ponto de vista antropológico, estou convencido que a arte tauromáquica
desempenhou ao longo da evolução humana um importante papel, sobretudo no que
se refere à transferência para o animal da violência anti-social humana. Penso
mesmo que nas touradas, o touro funciona como uma espécie de bode-expiatório;
nesse sentido, o touro transforma-se em alvo de uma notável estilização da
violência inter-humana. Obviamente, não é por acaso que a tourada sempre
assumiu uma dimensão quase religiosa, certamente ritual.
Mas a pergunta nem precisa de ser essa, mas antes
esta: hoje, ainda se justificam as touradas? Não; não há modo de as justificar.
Mas talvez haja, e disso estou convicto, de convincentemente as tolerar e isso
tanto mais assim quanto as «corridas» continuam a ter um não desprezível valor
económico e a representar um aspecto fortemente marcante da nossa «cultura»,
especialmente em zonas como Ribatejo e Alentejo.
Tanto quanto sei, a Igreja sempre manteve (pelo menos
na ordem dos princípios) uma forte distância em relação a estes eventos. E
ainda bem! E se o digo, é por uma razão muito simples: a dimensão sacrificial
da tourada, e a sua conotação (pseudo-)religiosa, com o advento do
Cristianismo, ficou totalmente esvaziada. De facto, essa justificação tornou-se
de todo impossível. Que resta, então?
Em meu entender, apenas isto: o atavismo das
tradições, o profissionalismo dos «artistas», o «voyeurismo» de muitos. Do
ponto de vista psicológico, não digo que a visualização numa arena da morte de
um touro, quando ela acontece, não possa constituir factor de reforço da
vontade de viver dos que ao espectáculo assistem; mas tampouco duvido de que,
com isso, coisas essenciais se podem perder, como sejam o valor da ternura, o
sentido do respeito, o reconhecimento da própria vulnerabilidade, bem como da
nossa mais inevitável mortalidade.
Em suma, mesmo estando longe de demonizar as touradas,
confesso que não gosto de as ver, mesmo quando posso admirar a performance dos
artistas que fazem, ou sofrem, a lide. Mais importante do que tudo, penso que é
mais do que tempo para que nas nossas sociedades, agora que temos muitos outros
mecanismos para lidar com a violência ínsita no coração humano, se deixe para a
história uma tradição, a das touradas, que para muitos dos nossos concidadãos
constituem, ainda que não raro por falsas razões, um factor de escândalo que
deve ser reconhecido e, como tal, devidamente evitado. Naturalmente, repudio o
«animalismo» por ser esta uma perigosa forma de ideologia, coisa tanto mais
séria quanto, não raro, são muitos graves as consequências que muitos,
falsamente, deduzem na hora de pensar a moral e a ética, nomeadamente sempre e
quando nos seus raciocínios a primeira coisa que tendem a fazer é equiparar o
ser humano ao simples animal.
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 17.05.2014):