sexta-feira, maio 16, 2014



A Trincheira das Razões



1. Coordenado por Fátima Campos Ferreira, o último Programa “Prós e Contras” sobre Tauromaquia, suscitou justificado interesse e provocou díspares comentários antológicos, de entre os quais – para além da retoma do assunto em Blogues de incidência permanente, como o “Arco de Almedina” – chamou-me mais natural e especialmente a atenção aquele que o sacerdote jesuíta João Vila-Chã publicou no Facebook e que adiante, para devida consulta, reproduzirei na íntegra.


2. Ora apesar de algumas perspectivas e “axiomas” ali defendidos (ou omissos...), que antes deviam ter sido dados como “questões disputáveis” (v.g. os exigentes problemas filosóficos e jurídicos do “estatuto ontológico”, do “princípio da igualdade”, “do limite da senciência”, dos “direitos dos animais” e dos “deveres humanos” para com eles; os processos rituais e os envolvimentos institucionais e religiosos no fenómeno taurino; a não-referência à variedade de modelos “socioculturais” e à discrepância de manifestações que a “festa brava” assume (caso das “touradas à corda” nos Açores); o impacto do espectáculo e seu inerente carácter violento na psicologia colectiva e individual, na memória e nos imaginários etnográficos e histórico-políticos civilizacionalmente sempre situados em sociedades dissemelhantes; a dimensão antropológica, estética e ética dos valores também ali em confronto e conflito; a disparidade contextual de atitudes, acções e discursos dos distintos intervenientes no habitus e no campo tauromáquico; o papel dos técnicos, veterinários e cientistas sociais na avaliação global e integrada dos capitais simbólicos e das práticas constituintes da “taurinidade”; a dimensão ecológica, comercial, profissional e empresarial da tauro-indústria; a vasta e conhecida representação literário-ficcional e a criticamente já bem qualificada produção ensaística sobre a corrida e a decorrente e indeclinável abordagem filosófica e pluridisciplinar do psiquismo, do binómio dor/sofrimento, da consciência e da bio-sensitividade animal, inseparáveis da compreensão profunda da estrutura metafísica e ético-espiritual de todos os actos existenciais humanos, etc., etc.)...


– Pese embora tudo isso (que a filósofos não pode escapar nunca!), ao que vimos e infelizmente ali faltou – dizia –, é de registar todavia a pertinência e seriedade desta reflexão de Vila-Chã, na medida em logrou sugerir (com a pertinente introdução da figura do “bouc-emissaire”, como sabemos, aplicável tanto a partir da hermenêutica bíblica quanto em articulação, neste âmbito temático, com as teses de Frazer e de Girard, por exemplo...) um óptimo contributo para a continuação sistemática de um debate ainda em aberto, sobre um “tema muito polémico” e mais complexo do que aparenta, tal como aliás ficou demonstrado nas contendas entre a plateia e os escolhidos membros dos painéis – presumidos representantes oficiosos de lides e sortes pró e anti-tourada... –, porém também nos limitadores (e intencionais?) balanceamentos revelados pela moderadora, que aparentou, neste caso, não ter compulsado devidamente a difícil matéria crítica ensarilhada nos escorregadios terrenos, faenas e trincheiras de tão passionais arenas! 


3. O texto do Prof. Vila-Chã – antigo director da nossa saudosa e estimável Revista Portuguesa de Filosofia –, cuja integral e criteriosa leitura recomendo, acentuando porém que foi (indicativamente até...) escrito antes da transmissão do “Prós e Contras”, é do seguinte teor:

– A tourada é, desde há anos a esta parte, um tema muito polémico. Em Portugal e não só. Estou informado de que o «Prós & Contras» desta semana será dedicado a esta temática. Naturalmente, desejo à jornalista Fátima Campos Ferreira a melhor moderação possível. Imagino de antemão a emoção que vai acontecer nesse programa, e (talvez) ainda bem. Mas também espero que ali se façam ouvir as vozes da razão. E estas, claro, podem ser várias. Pessoalmente, nunca gostei de touradas e só pela televisão, quando era menino, vi um ou outro episódio de cariz tauromáquico. Ainda me lembro de algumas impressionantes acrobacias por parte dos cavaleiros, da escalofriante coragem dos forcados, e muito menos esqueci um ou outro acidente que se deu na arena e a que pela televisão, sem querer, assisti. Recordo touros ofegantes e alguns chapéus no ar. Tenho presente actos humanos de enorme risco e coragem, acrobacias (quase) impensáveis, o aplauso das (pequenas) multidões.

Hoje, porém, mesmo sem ver o «Prós & Contras» desta noite, tenho mais que tudo presente dois axiomas que julgo deverem estar no centro da nossa atenção quando reflectimos sobre a nossa relação com o mundo dos animais, e que formulo em termos como os seguintes: os animais não são pessoas, mas não devem ser maltratados; os animais não têm direitos, mas perante eles nós temos obrigações.

Em si mesmas, as touradas são fenómenos sociais, e rituais, muito antigos, com origens na nossa história comum mais remota. Uma vez em Creta, recordo ter visto uma impressionante representação, multimilenária, do confronto que na tourada se dá entre o homem e o animal. Do ponto de vista antropológico, estou convencido que a arte tauromáquica desempenhou ao longo da evolução humana um importante papel, sobretudo no que se refere à transferência para o animal da violência anti-social humana. Penso mesmo que nas touradas, o touro funciona como uma espécie de bode-expiatório; nesse sentido, o touro transforma-se em alvo de uma notável estilização da violência inter-humana. Obviamente, não é por acaso que a tourada sempre assumiu uma dimensão quase religiosa, certamente ritual.


Mas a pergunta nem precisa de ser essa, mas antes esta: hoje, ainda se justificam as touradas? Não; não há modo de as justificar. Mas talvez haja, e disso estou convicto, de convincentemente as tolerar e isso tanto mais assim quanto as «corridas» continuam a ter um não desprezível valor económico e a representar um aspecto fortemente marcante da nossa «cultura», especialmente em zonas como Ribatejo e Alentejo.

Tanto quanto sei, a Igreja sempre manteve (pelo menos na ordem dos princípios) uma forte distância em relação a estes eventos. E ainda bem! E se o digo, é por uma razão muito simples: a dimensão sacrificial da tourada, e a sua conotação (pseudo-)religiosa, com o advento do Cristianismo, ficou totalmente esvaziada. De facto, essa justificação tornou-se de todo impossível. Que resta, então?

Em meu entender, apenas isto: o atavismo das tradições, o profissionalismo dos «artistas», o «voyeurismo» de muitos. Do ponto de vista psicológico, não digo que a visualização numa arena da morte de um touro, quando ela acontece, não possa constituir factor de reforço da vontade de viver dos que ao espectáculo assistem; mas tampouco duvido de que, com isso, coisas essenciais se podem perder, como sejam o valor da ternura, o sentido do respeito, o reconhecimento da própria vulnerabilidade, bem como da nossa mais inevitável mortalidade.

Em suma, mesmo estando longe de demonizar as touradas, confesso que não gosto de as ver, mesmo quando posso admirar a performance dos artistas que fazem, ou sofrem, a lide. Mais importante do que tudo, penso que é mais do que tempo para que nas nossas sociedades, agora que temos muitos outros mecanismos para lidar com a violência ínsita no coração humano, se deixe para a história uma tradição, a das touradas, que para muitos dos nossos concidadãos constituem, ainda que não raro por falsas razões, um factor de escândalo que deve ser reconhecido e, como tal, devidamente evitado. Naturalmente, repudio o «animalismo» por ser esta uma perigosa forma de ideologia, coisa tanto mais séria quanto, não raro, são muitos graves as consequências que muitos, falsamente, deduzem na hora de pensar a moral e a ética, nomeadamente sempre e quando nos seus raciocínios a primeira coisa que tendem a fazer é equiparar o ser humano ao simples animal.


 Dito isto, não deixo de reconhecer que num ponto muito preciso os opositores das touradas têm razão, e é este: é injustificado, e como tal não-racional, infligir a um animal sofrimento desnecessário, coisa que se torna tanto mais grave quando um tal sofrimento possa apenas derivar da tentação voyeurista de ver no animal seviciado um modo (inautêntico) de fugir à responsabilidade que, independentemente de sermos defensores ou não da tourada, todos temos perante a vida e a morte que a mesma contém.
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 17.05.2014):
















e "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 25.05.2014):