sexta-feira, junho 27, 2014


O Resplendor do Santuário
e Os Esplendores da Corte



1. Quando parecia relativamente pacificado – ou em diocesanas e irmanadas vias de silenciamento... –, o imbróglio à volta do Resplendor de Santo Cristo ganhou nos últimos dias novos desenvolvimentos com notícias sobre desaparecimentos e/ou trocas de jóias na peça; com contradições entre os calendários oficialmente anunciados para a sua famosa exposição em Lisboa; com o teor das entrevistas de D. António ao “AO” e à RDP-A (onde o essencial das questões e tudo o que se lhe vai seguir continua a ser escamoteado, ou minorado, infelizmente, sem perceptível discernimento); com a articulada multiplicação de azedumes nos OCS e nas redes sociais (onde um clérigo rústico, sem trela na língua mas com afino na aparada orelha, até julgou captar “uivos” nas vozes dos opositores à saída do Resplendor, comprovando, conquanto ignorante disso, quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur ...); e – por último – agora com a divulgação de três textos a propósito deste tema, cada um a seu modo exemplar, chegamos a uma penúltima fase desta questão, talvez até a caminho de algum esquecimento, por entre paradigmáticos e supinos (des)interesses regionais e nacionais (antes futebol, toiros, festivais de estação calmosa, acampadas noites a toque de frasquinhos aromáticos e douradas fresquinhas, deleites e remansos turísticos...), porém com reincidências modelares já prometidas para o resto do Verão que vem tardio e em concorrência de autárquicos brios, para já nem contar do que ainda falta ver neste ano e para o próximo...



2. Em todo o caso, aqui deixamos uma chamada de atenção para três textos acessíveis: um de Sandra Saldanha (presidente do Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja), que subscreve e retoma conhecidos argumentos diocesanos; outro do Museu de Arte Antiga, onde, sintomaticamente, são nomeadas “cinco jóias de exceção que ilustram o esplendor artístico da corte de Lisboa”, “...seja pelo superlativo valor material e estético, seja pelo significado espiritual e cultural que o percorre [ao Resplendor] transversalmente...” (sic); e por fim um outro, da autoria de Maria Isabel Roque, que – depois de fazer um percurso sintético mas bem informado pela génese e história do Culto e Devoção ao Senhor Santo Cristo – termina o seu aguardado, rigoroso e pedagógico artigo, com lúcidas reflexões que em excerto vamos reproduzir e que substancialmente partilhamos (1).


 3. Maria Isabel Rocha Roque é doutorada em História com a tese “Musealização do Sagrado: Práticas museológicas em torno de objectos do culto católico”, tendo integrado os comissariados das exposições Encontro de Culturas (Lisboa, 1994; Vaticano, 1996), Fons Vitae (Pavilhão da Santa Sé na Expo'98) e 500 Anos das Misericórdias Portuguesas (Lisboa, 2000). Lecciona Museologia e Património na Universidade Católica, e História Geral da Arte, História da Arte em Portugal e História da Arte Contemporânea, na Universidade Europeia (antigo ISLA). Entre outros trabalhos, é autora dos livros referenciais Altar Cristão: Evolução até à Reforma Católica (2004) e O Sagrado no Museu: Musealização de Objectos do Culto Católico em Contexto Português (Lisboa: Universidade Católica Editora, 2011), obra a que faremos referência em Crónica posterior. 

Aqui fica pois uma séria abordagem socio-religiosa, pastoral, doutrinal, filosófica e teológica devidamente fundamentada, e à qual não faltou um prudente sentido da realidade:

– “Sou irrevogavelmente a favor da musealização do património religioso (...). A musealização proporciona inequívocas oportunidades de estudo, de restauro e de divulgação de obras que são, ordinariamente, vistas num determinado contexto e segundo uma perspetiva particular. Porém, tenho lido uma série de considerações erradas em relação a este assunto: não é verdade que a Custódia de Belém não se tenha dessacralizado pelo facto de estar num museu; e também não é verdade que o resplendor seja um objeto sagrado.

“Num processo de musealização, as alfaias sagradas perdem a sacralização: ‘Não obstante as características de sacralidade atribuídas pela consagração, actualmente e para evitar utilizações abusivas dos objectos desafectos ao culto, a execração (isto é, a perda da qualidade de ungido) é implícita logo que o objecto seja desapropriado ou danificado. […] Isto significa que os objectos desafectos do ritual se encontram destituídos, imediata e inequivocamente, do conteúdo sacro que lhes esteve intrínseco, o que os liberta para funções profanas, nomeadamente, as de ordem museológica’. Além disso, as imagens de culto e os objetos devocionais não são consagrados e, portanto, não beneficiam da reserva de interdição. Constituem um sinal exterior da devoção através dos quais o crente materializa a sua crença no divino.



 “O resplendor é um dos atributos do Senhor Santo Cristo e é, igualmente, um documento do sentido estético do barroco, do gosto pelo aparato no contexto do exacerbamento das paixões e das emoções inerente à própria imagem e ao ritual a que está associada. Porém, não se trata um adereço qualquer. Trata-se de um complemento inerente a uma imagem cujo culto continua ativo. Nesta contingência e à partida, a imagem fica truncada do resplendor; o resplendor, atributo da representação da divindade, também perde leitura sem a imagem que o justifica e o seu significado ficará necessariamente truncado, caso seja apresentado apenas em função do seu conteúdo material e estilístico. Cabe, por isso, ao museu – e aos curadores – criar as estratégias que compensem ambos os fenómenos de perda e, simultaneamente, esclareçam as tutelas e os devotos acerca das vantagens e das contrapartidas decorrentes de uma ação que, além disso, é temporária.


“A questão de fundo tem a ver com a noção de património e o sentido de pertença. Mais do que à Irmandade, a imagem e o seu resplendor pertencem a quem lhe presta culto. Pois é no uso e no zelo que está o merecimento. Enquanto houver uma função de uso, esta sobrepõe-se a outras utilizações secundárias, sejam marginais ou complementares. Se for quem se opõe ao empréstimo do resplendor para a exposição no Museu de Arte Antiga, for quem lhe presta o culto e lhe garante uma contínua devoção, a sua decisão deve ser soberana porque, neste caso, a funcionalidade se mantém ativa. A quem pede o empréstimo, se estiver convicto da consistência e da articulação do projeto museológico, resta encetar uma ação de pedagogia junto da comunidade, apresentando os argumentos que justificam a inclusão da peça no programa expositivo e oferecendo alternativas para que a imagem, sem o resplendor, não perca a integridade aos olhos de quem a procure.

“Neste processo, ao invés de extremar posições, impunha-se a procura de consensos. A resolução não deveria ter sido ao arrepio de quem efetivamente zela pela preservação de um património que considera seu e, como tal, lhe garante a autenticidade”.

(1) Cf. texto integral aqui: http://amusearte.hypotheses.org/558
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 28.06.2014):






























e  "Diário Insular"  (Angra do Heroísmo, 06.07.2014):