O Resplendor do Santuário
1. Quando parecia relativamente pacificado – ou em diocesanas e
irmanadas vias de silenciamento... –, o imbróglio à volta do Resplendor de
Santo Cristo ganhou nos últimos dias novos desenvolvimentos com notícias sobre
desaparecimentos e/ou trocas de jóias na peça; com contradições entre os
calendários oficialmente anunciados para a sua famosa exposição em Lisboa; com
o teor das entrevistas de D. António ao “AO” e à RDP-A (onde o essencial das
questões e tudo o que se lhe vai seguir continua a ser escamoteado, ou
minorado, infelizmente, sem perceptível discernimento); com a articulada
multiplicação de azedumes nos OCS e nas redes sociais (onde um clérigo rústico,
sem trela na língua mas com afino na aparada orelha, até julgou captar “uivos”
nas vozes dos opositores à saída do Resplendor, comprovando, conquanto ignorante
disso, quidquid recipitur ad modum recipientis
recipitur ...); e – por último – agora com a divulgação de três textos
a propósito deste tema, cada um a seu modo exemplar, chegamos a uma penúltima
fase desta questão, talvez até a caminho de algum esquecimento, por entre
paradigmáticos e supinos (des)interesses regionais e nacionais (antes futebol,
toiros, festivais de estação calmosa, acampadas noites a toque de frasquinhos
aromáticos e douradas fresquinhas, deleites e remansos turísticos...), porém com
reincidências modelares já prometidas para o resto do Verão que vem tardio e em
concorrência de autárquicos brios, para já nem contar do que ainda falta ver
neste ano e para o próximo...
2. Em todo o caso, aqui deixamos uma chamada de atenção para três
textos acessíveis: um de Sandra Saldanha (presidente do Secretariado Nacional
dos Bens Culturais da Igreja), que subscreve e retoma conhecidos argumentos
diocesanos; outro do Museu de Arte Antiga, onde, sintomaticamente, são nomeadas
“cinco jóias de exceção que ilustram o esplendor artístico da corte de Lisboa”,
“...seja pelo superlativo valor material
e estético, seja pelo significado
espiritual e cultural que o percorre [ao Resplendor] transversalmente...” (sic); e por fim um outro, da autoria de Maria
Isabel Roque, que – depois de fazer um percurso sintético mas bem informado
pela génese e história do Culto e Devoção ao Senhor Santo Cristo – termina o
seu aguardado, rigoroso e pedagógico artigo, com lúcidas reflexões que em
excerto vamos reproduzir e que substancialmente partilhamos (1).
Aqui fica pois uma séria abordagem socio-religiosa, pastoral, doutrinal, filosófica e teológica devidamente fundamentada, e à qual não faltou um prudente sentido da realidade:
– “Sou irrevogavelmente a favor
da musealização do património religioso (...). A musealização proporciona
inequívocas oportunidades de estudo, de restauro e de divulgação de obras que
são, ordinariamente, vistas num determinado contexto e segundo uma perspetiva
particular. Porém, tenho lido uma série de considerações erradas em relação a
este assunto: não é verdade que a Custódia de Belém não se tenha dessacralizado
pelo facto de estar num museu; e também não é verdade que o resplendor seja um
objeto sagrado.
“Num processo de musealização, as
alfaias sagradas perdem a sacralização: ‘Não obstante as características de
sacralidade atribuídas pela consagração, actualmente e para evitar utilizações
abusivas dos objectos desafectos ao culto, a execração (isto é, a perda da
qualidade de ungido) é implícita logo que o objecto seja desapropriado ou
danificado. […] Isto significa que os objectos desafectos do ritual se
encontram destituídos, imediata e inequivocamente, do conteúdo sacro que lhes
esteve intrínseco, o que os liberta para funções profanas, nomeadamente, as de
ordem museológica’. Além disso, as imagens de culto e os objetos devocionais
não são consagrados e, portanto, não beneficiam da reserva de interdição.
Constituem um sinal exterior da devoção através dos quais o crente materializa
a sua crença no divino.
“O resplendor é um dos atributos
do Senhor Santo Cristo e é, igualmente, um documento do sentido estético do
barroco, do gosto pelo aparato no contexto do exacerbamento das paixões e das
emoções inerente à própria imagem e ao ritual a que está associada. Porém, não
se trata um adereço qualquer. Trata-se de um complemento inerente a uma imagem
cujo culto continua ativo. Nesta contingência e à partida, a imagem fica
truncada do resplendor; o resplendor, atributo da representação da divindade,
também perde leitura sem a imagem que o justifica e o seu significado ficará
necessariamente truncado, caso seja apresentado apenas em função do seu
conteúdo material e estilístico. Cabe, por isso, ao museu – e aos curadores –
criar as estratégias que compensem ambos os fenómenos de perda e,
simultaneamente, esclareçam as tutelas e os devotos acerca das vantagens e das
contrapartidas decorrentes de uma ação que, além disso, é temporária.
“A questão de fundo tem a ver com
a noção de património e o sentido de pertença. Mais do que à Irmandade, a
imagem e o seu resplendor pertencem a quem lhe presta culto. Pois é no uso e no
zelo que está o merecimento. Enquanto houver uma função de uso, esta
sobrepõe-se a outras utilizações secundárias, sejam marginais ou complementares.
Se for quem se opõe ao empréstimo do resplendor para a exposição no Museu de
Arte Antiga, for quem lhe presta o culto e lhe garante uma contínua devoção, a
sua decisão deve ser soberana porque, neste caso, a funcionalidade se mantém
ativa. A quem pede o empréstimo, se estiver convicto da consistência e da
articulação do projeto museológico, resta encetar uma ação de pedagogia junto
da comunidade, apresentando os argumentos que justificam a inclusão da peça no
programa expositivo e oferecendo alternativas para que a imagem, sem o
resplendor, não perca a integridade aos olhos de quem a procure.
“Neste processo, ao invés de
extremar posições, impunha-se a procura de consensos. A resolução não deveria
ter sido ao arrepio de quem efetivamente zela pela preservação de um património
que considera seu e, como tal, lhe garante a autenticidade”.
(1) Cf. texto integral aqui: http://amusearte.hypotheses.org/558
(1) Cf. texto integral aqui: http://amusearte.hypotheses.org/558
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