O Ébola em Casulos Levianos
____________________________________________________________
Conforme sucintamente referimos
do DI de há uma semana, acentua-se diariamente a apreensão mundial pela propagação exponencial do Ébola (num
incremento dos medos descritos por Richard Preston em The Hot Zone), a par dos novos avisos das organizações nacionais e
internacionais e dos maiores especialistas em Saúde Pública e Epidemiologia, na
mesma altura em que a propagação viral
(já epidémica em certos locais de África!) – espera-se que sem a possível mutação – começa a ameaçar outros continentes e países (até mais
desenvolvidos)...
– E isto verifica-se em
simultâneo com a divulgação de (im)previsões
globais (também envolvendo Portugal...), que não podem deixar-nos, especialmente
no caso açoriano, sem continua e
devida atenção prática e decorrente avaliação crítica de todas as
componentes deste importante fenómeno, e tão mais urgentemente quanto, a nível
nacional, continuam a grassar divergências
quer sobre a nossa preparação para
lidar com o Ébola quer sobre a possibilidade
de Portugal poder vir a ter contaminações
desse vírus, risco aliás já admitido pelo director-geral da Saúde perante a
respectiva Comissão da Assembleia da República, reconhecendo-se ali que podem verificar-se – “até ao fim do mês” –, “2, 3, 4 casos
(...) importados”, muito embora Francisco George insista simultaneamente na
afirmação de que o país está “preparado” para lutar com esse desafio, precisamente
porém ao contrário do Colégio da
Especialidade de Saúde Pública que sobre o mesmo tema se pronunciou já:
Na verdade, segundo um
(entretanto já controvertido) Parecer
(disponível na íntegra no respectivo Portal
Oficial) desse organismo da Ordem dos
Médicos, “o risco teórico de virmos a ter casos de Ébola em Portugal é
alto. Se isso acontecer, a dimensão (...) que o problema poderá atingir em
termos numéricos (casos e mortes) e de impacto social, depende inteiramente da
capacidade dos serviços de Saúde e da sociedade em geral lidarem com o
problema”, sendo que esse mesmo risco é especialmente potenciado devido
“posicionamento de Portugal como país integrante” dos PALOP, ao qual, do ponto
de vista geográfico, humano, estratégico, “pode ainda adicionar-se, como
elemento satélite a pesar no fardo do problema, o facto de termos ébola em Espanha,
país vizinho e com o qual não existem fronteiras facilmente controláveis, pelo
que em termos de circulação de pessoas (do vírus) se pode considerar a península
como um só país”.
– E depois de analisar, país a
país, situação a situação, os contextos da Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe,
Cabo Verde e Moçambique, o documento daquele Colégio da Ordem dos Médicos
analisa bastante criticamente a
(im)preparação de Portugal para lidar com o Ébola, tanto numa perspectiva teórica quanto numa perspectiva real, articuladas ambas com
um suposto “Plano de contingência nacional”, no qual “o modo, confuso e cheio
de pontas soltas, como a realidade geralmente se apresenta” e onde o “enfatizar
que a tónica na intervenção centrada apenas em serviços hospitalares é errada e
que a sua comunicação nos media, centrada em técnicas médicas de ponta e
cuidados milagrosos de assistência, produz na população a tal falsa sensação de
segurança já invocada”.
E por fim, o citado Parecer chega
ao ponto de descrever um imaginário (hipotético,
mas verosímil e realista!) panorama, cuja analogia (sem entrar em linha de conta
com barcos, portos e marinas) com um similar
cenário insular açoriano não é difícil de estabelecer:
– “O que será lógico esperar –
como qualquer epidemiologista experimentado ou qualquer médico de saúde pública
sensato sabe desde os tempos do Professor Ricardo Jorge – é que o tal caso de ébola não vai chegar com uma
bandeirinha a assinalá-lo ao aeroporto da Portela [das Lajes, ou de outro
qualquer aeroporto das ilhas], onde logo chegará uma ambulância [devidamente preparada?] do INEM [dos Bombeiros ou do SRPCBA], que o levará [a
partir desse tal aeroporto] sem demora ao Curry Cabral [ou a outro Hospital de referência, sempre fora dos Açores], onde espera por ele um
quarto [ou um casulo...] isolado e
apetrechado [eventualmente (?), primeiro num helicóptero Merlin e depois num
avião Falcon...].
Todavia, o que “a realidade nos
tem demonstrado (designadamente nos casos ocidentais desta epidemia, mas antes
disso na história de qualquer surto ou epidemia) é que um (ou mais) caso
infectado chegará silenciosamente ao aeroporto num voo fora de horas, em
perfeito estado aparente, onde (...) onde um carro cheio de familiares saudosos
o esperará para o levar (...), onde há um almoço de celebração do regresso dele
(...) marcado para o dia seguinte e onde estarão presentes cerca de cinquenta
pessoas que ele, emocionado, abraçará fortemente. E no dia seguinte ao almoço
sentir-se-á, pela primeira vez, febril e com dores articulares, cansado, mas irá
pensar que tudo isso é fruto da viagem, das horas mal dormidas, da emoção... É
isto que poderemos esperar na maioria das situações, não com uma realidade que
se molda aos manuais ou aos monitores com algoritmos de uma sala de controlo de
emergências”!
– Ora a auscultação de
profissionais, decisores, estudiosos, especialistas e operacionais, directa ou
indirectamente cientes desta exigente, complexa e pluridisciplinar situação, mais
fundamenta e evidencia, também aqui
nas ilhas, idêntica e proporcionada
preocupação... Mas continuamos, perplexos, a assistir a orientações nacionais
(e regionais!) pouco definidas, imprevidentes ou em sobreposição e atropelamento de práticas de duvidosa segurança e pouca viabilidade, como aquelas que prevêem a
criação, nos Centros de Saúde, de “espaços para isolar temporariamente [“por
horas” (sic)] doentes suspeitos” de Ébola, ou as outras, emanadas da Autoridade
Nacional de Protecção Civil, avisando os Bombeiros – perante as questões e
dúvidas da Liga sobre o papel destes profissionais no âmbito da prevenção do
vírus do Ébola em Portugal – de que estes não
devem transportar casos suspeitos, antes contactando o INEM ou a linha de
Saúde...
Assim e para mais ainda, perante
a leviandade nacional e regional,
face às potenciais vulnerabilidades que
a indigitação das Lajes contém como Aeroporto,
e agora, como já salientámos – com a inadmissível
menorização institucional açoriana
atingindo o cúmulo da pura ficção
(para não dizer temerária falsidade) de
que se poderia “ter confiança no dispositivo
montado [?] ao nível da Região”, e cujo planeamento estaria “a decorrer em
estreita articulação” com a DGS e com o SRPCBA – alegando-se até que o Arquipélago possuiria um “plano de contingência regional para casos
específicos, dado que a Região tem características distintas do continente, mas
integra-se do plano nacional” –, comprova-se e confirma-se que “não houve [sequer!] formação” de quaisquer “equipas médicas” nos Açores, e que esta “É
uma situação nova. Sabemos a teoria, mas não a prática” (sic)!
– Realmente, repita-se, tudo
neste caso permanece um perigoso
retrocesso se o comparamos, por exemplo, com as ameaças do H5N1, onde ao
menos não esperávamos (em ambulância?!)
que um Falcon de Lisboa, alertado pelo 112, viesse aterrar no nosso quintal...,
até porque aqui, à semelhança do que foi feito lá no Continente para a gripe
pandémica de 2006/07, “uma estrutura foi montada, circuitos foram criados de
novo e a máquina de enfrentar uma epidemia (...) ficou oleada.
“ (...) Parece-nos [ao Colégio da Especialidade de Saúde
Pública da Ordem dos Médicos, e também a nós, nos Açores] que essa
experiência anterior pouparia – imediatamente
e logo nas nossas ilhas e Região
Autónoma – na ameaça de crise actual, tempo e dores de cabeça”, tanto mais
quanto, “salvo melhor informação que, até agora, não chegou ao conhecimento do
público ou da generalidade dos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros,
profissionais de laboratório, pessoal administrativo, pessoal auxiliar de apoio
a cuidados médicos) nenhuma orientação,
integrada e global, que inclua desde uma estratégia nacional para lidar com
o problema até à emissão de informação que responda às perguntas e ansiedades
do público em geral e dos profissionais de saúde em particular”!
– E depois, com todas essas (ir)responsabilidades governamentais
açorianas e lisboetas, bem à vista de todos, é um tremendo ónus que se está a fazer recair sobre toda a população regional e nacional, sem falarmos nos riscos e tremendos comprometimentos que assim sobremaneira pendem sobre a
Força Aérea Portuguesa (e sobre a própria presença e logística norte-americanas...)
nos Açores, quando se sabe dos paralelos
empenhos em marcha, pelo mesmo Governo central português, em acudir (e
bem!), no estrangeiro, ao circulatório terreno
geográfico e humano africano, na Guiné e em Cabo Verde...
_________
Em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 24.10.2014).