Entrevista
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EDUARDO
FERRAZ DA ROSA
Simone Weil: Um legado decisivo
na reflexão crítica
sobre a Europa
A Assembleia da República acaba de publicar um novo Dicionário temático, desta vez sobre As Mulheres e a Unidade Europeia. Qual o conteúdo e autores desta obra?
EDUARDO FERRAZ DA ROSA (EFR) – Integrado na “Coleção Parlamento”, este livro foi
organizado e coordenado por Isabel Baltazar, Isabel Lousada e Alice Cunha. A obra contempla mais
de 80 Entradas, assinadas por outros tantos autores, como resultado de um
assumido trabalho que “ultrapassou fronteiras, convocou investigadores,
docentes e especialistas de múltiplas áreas, tendo por pano de fundo mulheres
que, ao longo da História, participaram na construção da unidade europeia”.
Os nomes escolhidos são de figuras femininas (apelidadas de “Mães da
Europa”) que, desde a I Guerra Mundial à atualidade, participaram em sucessivos,
conquanto díspares, projetos teóricos, intelectuais e ideológicos,
político-institucionais, socioeconómicos, éticos e culturais, visando a
preservação da Paz possível, ou a tentativa de impedir a Guerra na Europa e no
Mundo.
Assim, a par de pacifistas, defensoras dos direitos humanos, militantes e
agentes humanitárias, este Dicionário inclui mais recentes protagonistas,
parlamentares nacionais e europeias, ministras e diplomatas, filósofas e
sociólogas, escritoras e cientistas, etc., cujas esferas de ação e decisão se
exerceram em relevantes áreas do pensamento e da vida.
– Desde um ensaio sobre a génese mitológica, mítica e histórico-ficcional da Europa, até entradas sobre Arendt, Beauvoir, Curie, Hillesium, Lubich, Edith Stein, Zambrano, Louise Weiss, Macchiocchi, Ursula Hirschmann, Sophie Scholl, Simone Veil, Nicole Fontaine, Merkel, Simone Weil, etc., e também com portuguesas como Maria Lamas, Elina Guimarães, Lourdes Pintasilgo, Irene de Vasconcelos, Helena Vaz da Silva e a nossa Natália Correia, esta obra contém textos, entre outros conhecidos ou mais novos, de Adriano Moreira, Cassiano Reimão, Artur Morão, Maria Manuela Tavares Ribeiro, Guilherme d’Oliveira Martins, Acílio Rocha, Isabel Baltazar, Isabel Lousada, Alice Cunha e Miguel Estanqueiro Rocha.
O denso texto da sua autoria é sobre uma figura de referência no Pensamento filosófico, religioso e político do século XX. Que contributos trouxe Simone Weil para uma reflexão sobre a Europa e A unidade europeia?
EFR
– Filósofa, mística, ensaísta, historiadora e ativista política de ascendência
judaica, Simone Weil nasceu em Paris (0.02.1909) e faleceu na Inglaterra, no
Sanatório de Grosvenor (Ashford, Kent, 24.08. 1943). Muito inteligente,
intuitiva, imaginativa e estudiosa, cedo se distinguiu pelos seus dotes
intelectuais, talento reflexivo e capacidade de assimilação recriadora de
questões disputáveis, matérias teoréticas, políticas, literárias e
socioculturais situadas e ainda contemporaneamente muito relevantes...
Nos finais de 1928 encontrou-se com o
movimento “La Révolution Prolétarienne”, desenvolvendo arrojadas militâncias e
pouco consensuais ações político-associativas. E em 1932, vésperas da ascensão
de Hitler, visita a Alemanha, naquela que será uma estada decisiva para o
estudo do movimento operário, partidário, sindical e ideológico alemão e
europeu. Liberal e pacifista, à margem de apologias sectárias ou inscrições de
manipulação, fossem de ordem confessional-religiosa ou político-ideológica, determinante
foi a pertença interior de Simone Weil à fé do Cristianismo que lhe é conatural
e contínua, conquanto sempre esquiva ao sistema dogmático do Catolicismo.
Tendo nascido numa época de grandes mutações histórico-civilizacionais, culturais e psicossociais, e tendo vivenciado dramas próximos, horrores e traumas da guerra, a vida e o pensamento de Simone decorreram sob o signo de dolorosas experiências de sofrimento físico e espiritual, conjugadas numa reflexão de excecional dimensão.
Deixou-nos pois contributos cruciais para
uma reperspetivação simultaneamente memorial e crítica da filosofia, religiões
e teologia, política e cultura, projetáveis
em valores e normas (algumas controversas) para um sonhado renascimento
civilizacional do Espírito Europeu, entendido e idealizável como projeto fiel
às raízes das comunidades de origem e destino – para usar uma expressão
concetual tão cara a Edgar Morin e que abordei no anterior Dicionário (Lisboa, 2019) sobre As
Grandes Figuras Europeias –, apesar de tantos antagonismos totalitários,
tentações de domínio e posse, ilusões imperiais e consumadas expressões daquela
tirânica Força que Simone dizia constituir a essência cruel do Poder niilista, desalmado
e maleficamente petrificante dos seres humanos e das sociedades sobre a sua
comum Humanidade!
– Assim, a coerência e superação real de todo e qualquer projeto histórico-cultural regenerador da Europa e do Mundo – cujas exigências em Simone, como disse Camus, nunca poderiam ser ignoradas –, teriam de assentar numa abertura profundamente atenta, ordenada e proporcionada aos “Deveres para com o Ser Humano”, às necessidades da alma, aos enraízantes valores da sabedoria, justiça, dignidade do trabalho, acolhimento misericordioso do pobre e do estrangeiro, enfim, da pluralidade ecuménica das religiões, no amor à verdade e na redentora espera ou retorno da Graça...
Qual a receção que a obra de Simone Weil tem merecido em Portugal?
EFR – Os títulos e temas principais da sua vida e obra, embora de modo cingido, têm vindo a ser progressivamente estudados entre nós, remontando, porém, aos anos 60 a primeira publicação traduzida de um livro seu (Opressão e Liberdade, em 1964, na coleção “Círculo do Humanismo Cristão” da famosa Livraria Morais Editora) e Simone Weil de M.-M. Davy (1969).
Foram-se seguindo edições e abordagens diversas e complementares, nomeadamente junto da Revista Portuguesa de Filosofia (Carrolo, a pioneira tese de Ana Janeira ou, mais recentemente, devo salientar, o belo estudo do meu amigo e colega açoriano Brandão da Luz), e finalmente – pelo seu Centenário (2009) – a publicação, coordenada por Maria Luísa Ribeiro Ferreira, dos textos do Colóquio evocativo, com textos, entre outros, de Pacheco Gonçalves, Tolentino de Mendonça, Vaz Pinto e Paulo Borges.
– Portugal – apesar de vulgarmente ignorando-a… – tem uma singular presença profunda (porém quase inexplorada) na existência de Simone, porquanto, antecedendo e tendo potenciado posteriores visões e experiências suas, foi aqui o lugar onde adveio a sua iniciática prova e registada narrativa de uma decisiva e inspiradora comoção estésico-metafísica e espiritual (em 1935), ali, num distante areal da Póvoa de Varzim, perante uma procissão à Senhora das Dores, numa romagem de velas, lamentos, cânticos pungentes e plenos das cifras daquele paradigmático malheur (que ainda ecoa em outros comovidos e expectantes verbos e sonhos poéticos...), perante o Silêncio que trai o Peso de Deus, tal como Simone Weil identicamente o ouviu ecoar nas vozes trágicas de pobres mulheres de pescadores, naquela iluminada Noite, junto ao Mar de Portugal.
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Publicado em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 16.07.2021)
e em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 18.07.2021):