Trabalho e Pão na Mesa
Na mensagem destinada à Caritas Internacional e à “Campanha contra a fome no
mundo” lançada por esta organização e desenvolvida em unidade com as suas 164
filiadas em 200 países e territórios, o Papa Francisco salientou ser um escândalo mundial estarmos ainda – ou, talvez melhor, já hoje – perante
a existência de quase mil milhões de pessoas que passam fome, sendo esta
uma realidade à qual “não podemos virar a cara para o lado” fingindo que não existe…
E neste propósito o Sumo
Pontífice exortava “todas as instituições do
mundo, toda a Igreja e cada um (…), como uma única família humana, a dar voz a
todas as pessoas que passam fome silenciosamente, a fim de que esta voz se
torne um grito que possa sacudir”, mensagem e apelo reforçados depois, na Praça
de S. Pedro, durante a última audiência pública semanal, nos seguintes termos:
– “O
escândalo por causa das milhões que sofrem por causa da fome não deve
paralisar-nos, mas levar-nos a agir, todos, indivíduos, famílias, comunidades,
instituições, governos, para eliminar esta injustiça”!
Entretanto e entre nós, ecos da exortação
papal fizeram sentir-se, ou vieram confluir, tanto na Caritas portuguesa como,
em coincidência de preocupações, denúncias ou empenhos socio-caritativos,
ético-políticos e político-programáticos, nas palavras e acções das mais
diversas entidades e vozes, muitas delas retomando e acentuando, com nobreza
moral, insistentemente e sem desfalecimento acomodado, cobarde, interesseiro ou
comodista, uma leitura das duras realidades que nos cercam (que são da Fome e decorrentemente
da mais atroz Pobreza, ou indigência, que padecer se possa!).
–
Assim e no mesmo sentido, em Serralves, na primeira de dez conferências
do ciclo O Estado das Coisas/As Coisas do
Estado, Adriano Moreira afirmou que “o
grande problema do povo português, neste momento, é trabalho e pão na mesa”, manifestando
preocupação pelo “ataque que é feito ao princípio do Estado Social” e
sustentando que “atirar os princípios pela janela é a mesma coisa que atirar a
esperança pela janela e a comunhão de afectos”… E mais acrescentou que, a não
salvaguardarmos esta comunhão dos afectos “vai ser muito difícil sairmos da
crise. Temos que fazer isso. A sociedade civil tem que se movimentar e
felizmente está a fazê-lo”.
O problema é histórico, e por
isso mesmo, como escrevia Saramago em tom vieiriano, no Memorial do Convento, “No
geral do ano há quem morra por muito ter comido durante a vida toda, razão por
que se repetem os acidentes apoplécticos (…). Mas não falta (…) quem morra por
ter comido pouco durante toda a vida, ou o que dela resistiu a um triste
passadio”…
De resto, países (como o nosso
pobre, desempregado e submetido Portugal), regiões (como a nossa, bem menos
autónoma e “socialista” do que se apregoa para constar do argumento e encostar
ao paredão…), mais cidades, vilas e freguesias e aldeias não faltam por esse
mundo de Deus (ou alienado dele…), aonde os paradigmas institucionais e
individuais reinantes – a todos os níveis da existência social e da vida
pessoal interior (ou da ausência dela) … – são os da “boca que mastiga de
sobejo para um lado e de escasso para o outro, não havendo portanto mediano
termo entre a papada pletórica e o pescoço engelhado, entre o nariz rubicundo e
o outro héctico, entre a nádega dançarina e a escorrida, entre a pança repleta
e a barriga agarrada às costas”…
– Porém, talvez sejam esses “mistérios
mercantis que os de fora ensinam e os de dentro vão aprendendo…”, cada dia mais
duramente, apesar das estatísticas e do resto que não se diz sempre por ser
verdade pesada de ouvir, mas impossível de silenciar em recta consciência!
Outra versão em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 14.12.2013):