Um Retrato Clássico
Há obras e autores cuja leitura tem o condão de causar sempre um
especial fascínio em quem deles se abeira ou com eles convive, seja pela
primeira e fascinante vez ou em outra qualquer retoma e irreprimível desejo de
fascinada, quase imperiosa, releitura.
– E isto, como Italo Calvino
finamente notou, não porque os “Clássicos” – guardados “nas dobras da memória,
mimetizando-se como inconsciente colectivo ou individual” – tenham um carácter
alheio ou alheado do Tempo, antes e mais propriamente porque a sua específica temporalidade é tão funda e
universal que o essencial do seu sentido os
torna verdadeiramente intemporais e
capazes de nos fazer ver e (re) pensar…
Ora é um desses textos que aqui
deixo hoje, do nosso Eça, do ano de 1871 e para despedida deste, como quem divisa
um retrato clássico, dramaticamente actual (ainda ou novamente intemporal?)
e infelizmente já quase assim:
– “O País perdeu a inteligência e
a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos.
A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não
seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita.
(…). Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se
progressivamente (…). O povo está na miséria. Os serviços públicos vão
abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia.
Vivemos todos ao acaso. (…) Todo o viver espiritual, intelectual, parado. O
tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se (…). A ruína económica
cresce, cresce, cresce…. O comércio definha. A indústria enfraquece. O salário
diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um
ladrão e tratado como um inimigo.
“ (...) A intriga política
alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do País. (…) Não é uma existência,
é uma expiação. (…) Esta pobreza geral produz um aviltamento na dignidade.
“ (…) Nas sociedades corrompidas
a ordem chega assim a reinar. (…) Tudo é pobre: a preocupação de todos é o pão de cada dia.
“ (…) Perdeu-se através de tudo
isto o sentimento de cidade e de pátria. Em Portugal o cidadão desapareceu. E
todo o País não é mais do que uma agregação
heterogénea de inactividades que se enfastiam.
“É uma Nação talhada para a
ditadura – ou para a conquista”…
Publicado em Jornal “Diário dos Açores” (Ponta Delgada, 28.12.2013):
Azores Digital:
e “Diário Insular” (Angra do Heroísmo, 28.12.2013):