Uma Memória Libertadora
1. Assinada em Roma pelo Papa
Francisco no dia de encerramento do Ano
da Fé (24 de Novembro), a Exortação Apostólica (1) Evangelii
Gaudium (A Alegria do Evangelho)
é um documento pastoral que deverá –
assim se espera, conforme expressamente pretendido pelo seu autor – marcar “uma
nova etapa evangelizadora (…) e indicar caminhos para o percurso da Igreja nos
próximos anos”.
– Dividido em 288 parágrafos
agrupados em 5 capítulos (“A Transformação Missionária da Igreja”, “Na Crise do
Compromisso Comunitário”, “O Anúncio do Evangelho”, “A Dimensão Social da
Evangelização” e “Evangelizadores com Espírito”), o conteúdo deste notável, belo
e denso texto, inserindo-se naturalmente na linha
teológica da Doutrina Social que vinha sendo continuadamente delineada em
especial pelos últimos Pontífices, traz contudo uma série de outras incisivas
propostas de leitura crítica dos
contemporâneos “sinais dos tempos”.
Ora é precisamente nesse sentido
que a Evangelii Gaudium é direccionada,
mas agora a partir de uma específica retoma da categoria bíblica (vétero e neotestamentária) e –digamos assim – para-teologal da
Alegria, visando e proclamando uma fecunda e revigorada nova acção evangelizadora
e missionária da universal existência
humana no mundo actual, aqui caracterizado como historicamente moldado e
hodiernamente assente no permanente grande
risco de “uma tristeza individualista que brota do coração comodista e
mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência
isolada” e de uma “vida interior” fechada nos próprios interesses, onde “deixa
de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz
de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo
de fazer o bem”!
2. Elaborada com discernimento e ousadia por este Papa
latino-americano, vindo da Companhia de Jesus e de um continente-mundo outro – e até sintomaticamente redigida com um notório esforço hermenêutico (logo atestado
pelos neologismos…), pela dialectização
conceptual das categorias antropológico-transcendentais e até pelos estilísticos
usos gramaticais do singular da primeira
pessoa (sem recurso à tradicional forma de um plural talvez de outro modo
mais majestático do que colectivo, colegial ou, inversamente, de Cúria romana…)
–, esta Exortação propõe, com admirável pertinência de análise, “algumas
directrizes que possam encorajar e orientar” o imperioso tratamento subsequente e consequente de toda uma
“multiplicidade de questões que devem ser objecto de estudo e aprofundamento
cuidadoso”…
E de facto neste documento do
Papa Francisco – conquanto não “com a intenção de oferecer um tratado, mas só
para mostrar a relevante incidência prática destes assuntos na missão actual da
Igreja” –, não faltam abundantes temas, problemas, pistas, exigentes
pensamentos e autores antigos, clássicos e modernos, desde a Patrística (S.
Ambrósio, S. Cirilo, S. João Crisóstomo…) ao seu mestre Romano Guardini ou a Ismael
Quiles, e desde Platão, S. Agostinho e S. Tomás de Aquino a John Henry Newman, George Bernanos e Henri de Lubac, passando por S. João da Cruz, Santa Teresa de Lisieux e
Tomás de Kempis, entre muitos outros inter-textualmente presentes ou reconhecidamente
paralelos às tematizações aduzidas e sempre a par ou por entre acontecimentos concretamente
vividos, factos pessoalmente padecidos (lembremos as resistências activas de Jorge Mario Bergoglio à ditadura torciária dos generais argentinos!), testemunhos agudamente percepcionados, dramas
históricos, denúncias proféticas e desafios religiosos, culturais e
civilizacionais seculares (ali abordados claramente, ou de modo suficientemente
audível e inteligível a partir de outras vozes afins…)!
– No entanto, e por isso mesmo, a Evangelii Gaudium solicitará também assim uma continuidade compreensiva e uma retoma reflexiva e ortoprática dos diversos e complementares delineamentos e conceitos que a moldam e integram, – muitos deles tantas vezes simplesmente já esquecidos ou intencionalmente ignorados (quando não até totalmente desconhecidos entre nós…), como sejam aqueles que dão objectivo e rigoroso conteúdo teológico, filosófico, ético, social e histórico-cultural aos documentos sinodais ou episcopais de todos os cinco continentes da Terra (com realce para os não-europeus ou menos eurocêntricos…), aos patrimónios e heranças espirituais das ordens religiosas (leia-se o que é recapitulado da lectio divina…), à sistemática do “sensus fidei” e do “querigma”, à mistagogia catequética, à dimensão estética dos ritos e do culto, à arte oratória e homiliética, às linguagens da inculturação, à defesa da dignidade inviolável do começo e do termo da vida humana, etc., etc., sem esquecer a necessidade fundante e básica de uma cultura geral, de educação humanística, histórico-filosófica, artística, ecológica e científica, de um sólido domínio das narrativas histórico-culturais planetárias, dos jogos da comunicação e das mentalidades civilizacionais, – todos eles permitindo ter acesso racional e afectivo às configurações e modelos poliédricos do Espírito e ao entendimento dos núcleos conceptuais e societários recorrentes de fenómenos como o irenismo, o nominalismo, o subjectivismo, o imanentismo antropocêntrico, o racionalismo, o gnosticismo e o pelagianismo…
Porém, e julgo que também isto
deve ser acentuado, o discurso desta Exortação é desenvolvido num crescendo
argumentativo incisivamente realista
mas quase angustiadamente apreensivo,
conforme dele amiúde ressalta com o
receio ou a suspeita (quando não
até previsão?) da posterior
consumação da possibilidade mesma daqueles fatais
e fatalistas alheamentos (conformismos, demissões e irresponsabilidades!)
que sistemática, institucional e individualmente geram e configuram, nas
recordadas palavras do seu antecessor Joseph Ratzinger/Bento XVI, essa maior ameaça que “é o pragmatismo
cinzento da vida quotidiana da Igreja, no qual aparentemente tudo procede
dentro da normalidade, mas [onde] na realidade a fé vai-se deteriorando e
degenerando na mesquinhez”, tal como o novo Papa igualmente ainda teme e
confessa:
“Não ignoro
que hoje os documentos não suscitam o mesmo interesse que noutras épocas,
acabando rapidamente esquecidos. Apesar disso sublinho que aquilo que pretendo
deixar expresso aqui, possui um significado programático e tem consequências
importantes. Espero que todas as comunidades se esforcem por usar os meios
necessários para avanças no caminho de uma conversão pastoral e missionária,
que não pode deixar as coisas como estão. (…) Constituamo-nos em ‘estado
permanente de missão’, em todas as regiões da Terra”.
“ (…) “É a
hora, escreve depois o Papa, de saber como projectar, numa cultura que
privilegie o diálogo como forma de encontro, a busca de consenso e de acordos,
mas sem a separar da preocupação por uma sociedade justa, capaz de memória e
sem exclusões”!
– Por tudo isto é que A Alegria do Evangelho não poderá deixar
de marcar o nosso pobre Tempo e o nosso escurecido Mundo, felizmente vinda,
como veio, neste Advento por mão do papa Francisco, à luz viva da Fé e do
anúncio apelativo de uma conversão
permanente e confluente de estruturas sociais e de corações, naquela única
“força que nos enche de imensa confiança e firmíssima esperança”, sob o signo
memorial da imagem de uma trémula Estrela no nosso céu de expectantes pastores,
junto ao Mistério indizível daquele Menino bem lembrado cujo nascimento representamos
e humildemente presenciamos no Presépio, como Sinal de Redenção para a Vida dos
Homens e para o Futuro Absoluto.
________
(1) – Texto integral da Exortação em Língua Portuguesa, disponível aqui:
(2) – Veja-se
a Entrevista do Papa ao jornal “La Stampa” e ao “Vaticam Insider”, em Inglês, aqui:
_________________________________- Em “Diário Insular” (Angra do Heroísmo, 29.12.2013):
Uma primeira versão deste texto (com o título de "Uma Alegria Libertadora") foi publicada no Jornal “Diário dos Açores” (Ponta Delgada, 21.12.2013):