sábado, junho 07, 2014

A Dessacralização dos Símbolos
e o Resplendor da Imagem Sacra

1. Com crescente impacto socio-religioso, pastoral, eclesial e mediático – muito embora nem sempre abordado do mais exigível, sério, fundamentado e aprofundado modo (quando não até degenerando para terrenos que extravasam a mais essencial e legítima tematização competente) –, o caso da controversa subtracção temporária do Resplendor do Senhor Santo Cristo ao conjunto das peças constituintes da integridade iconicamente sacralizada da Imagem e do respectivo Tesouro, para declarados fins de exposição artístico-museológica em Lisboa), bem que deveria merecer reflexão urgente e comprovadamente necessária na Igreja e em toda a sociedade açoriana...



 – E se dúvidas houvesse sobre as melindrosas e evidentes complexidades (teológico-pastorais, filosóficas, histórico-sociológicas, simbólicas e antropológico-culturais) deste escusado imbróglio; das conflituais reacções que tem provocado; das díspares leituras (nalguns casos despudoradas, levianas ou irresponsáveis) que suscitou, e das significativas lacunas – outrossim desejavelmente integradas, multidisciplinares e sistemáticas – de abordagem e de compreensão verificáveis nesse campo (mas que não foram ainda devidamente accionadas por quem teria esse indeclinável dever de múnus e/ou a correlativa responsabilidade de estudo, saber e conhecimento) –, logo bastaria, para avaliação integral e conscienciosa de tudo isto, auscultar as Redes Sociais, folhear a Imprensa terceirense e micaelense (com destaque para os pertinentes textos de Santos Narciso e Manuel Moniz), ou ter visto e ouvido a Rádio e a Televisão regionais, onde, por entre noticiários pontualmente atentos, entrevistas e reportagens, tiveram lugar alguns elucidativos debates (com realce para os depoimentos comoventes de Carlos Faria e Maia, e para as formulações sociológicas objectivas de Álvaro Borralho, ambas aliás em precisões e registos complementares e só aparentemente opostos...).

Ora – para além do mais que aqui não pode ser teórico-criticamente desenvolvido sobre espaços, tempos e retóricas de Museologia aplicada e de Arte Sacra e Profana –, que dizer de quanto este assunto merece ser levado a sério por tudo o que sintomaticamente revela, ou dissimula, da vida colectiva, dos imaginários espirituais (religiosos e profanos) e da hodierna configuração de valores, pensamentos e atitudes que estruturam mentalidades, práticas e discursos do povo açoriano, das suas supostas (porém decadentemente abúlicas ou medíocres) “elites”, classes e corporações, agentes e actores societários?


2. Conforme sublinhei anteriormente, de entre as várias formas expressivas da religiosidade e da fé religiosa católica nos Açores, o Culto ao Senhor Santo Cristo ocupa lugar único e absolutamente distinto, sendo mesmo que – das diversas devoções que nestas ilhas foram ganhando e perpetuando vigências espirituais, históricas, socioculturais e festivas (populares, eclesialmente integradas ou parcialmente autónomas face à hierarquia institucional da Igreja e ao Poder secular) – as venerações de cariz crístico ou representação cristológica (direccionadas à figura e à figuração iconográfica, pictórica ou escultórica de Jesus Cristo, estão presentes e são praticadas quase em todos os nossos lugares e contextos existenciais insulares e telúricos de crença, inconsciente e memória colectiva, reflectindo também conaturalmente as marcas das sucessivas e hegemónicas modelações tardo-medievais, contra-reformistas e barrocas da Evangelização no Arquipélago (especialmente por via dos Franciscanos e dos Jesuítas, com tudo o que histórico-dogmaticamente os seus carismas, variantes de espiritualidade, doutrina, formatos de prece e corporizações rituais, cultos e liturgia, determinações canónicas, etc., implicaram, a par, não negligenciável, de regimes de imposição dogmático-pastoral e de padronização normativa).


 – E foi deste modo que a proliferação cultual e votiva, reflectida sob arquetípica forma revelacional no Ecce Homo – ou seja, na feição dolorosa, passionária e sofredora de um ícone universal representativo do Homem das Dores – conseguiu, como nenhuma outra devoção portuguesa e açoriana – exceptuando as Festas do Espírito Santo! – grandes, profundas e significativas dimensões, polarizando e acumulando depois no Senhor Santo Cristo, devido à superiormente sustentada e específica acção pessoal, e à posteridade venerante de Madre Teresa da Anunciada, tudo quanto nele permanece perfeitamente identificável e ritualizado de modo ímpar e apelativo, tanto no recesso conventual do Santuário da Esperança como nas tradicionais manifestações festivas públicas, religiosas e profanas, nos Açores e nas Comunidades Açorianas, mas grandiosa e especialmente na ilha de S. Miguel, em sua cíclica honorificação.


3. Na altura em que escrevo esta Crónica, aguarda-se o regresso a S. Miguel do Bispo D. António, que deverá reunir com as entidades mais directamente ligadas ao Santuário da Esperança, no sentido de procurar-se um possível consenso pacífico que possa, com a desejável e prudente revogação da primeira decisão diocesana, impedir que o Resplendor da Imagem seja deslocado para a referida mostra (alegadamente com medidas de segurança asseguradas, conquanto constituindo estas apenas uma das muitas e justificadas razões a ter em conta numa proporcionalmente descontextualizada situação como a da planeada exposição e sua arbitrária narrativa e implantação artístico-museológica profana!).


 – Por outro lado, não deixa de ser originalidade, neste quadro litigioso, saber-se que, no Santuário, se prepara entretanto uma espécie de “objecção de consciência” em relação ao próprio gesto prático-laboral de remoção física do Resplendor da Imagem, o que acentuará simbolicamente as divergências existentes... Seja porém como for que este assunto chegue a uma próxima, já tardia e responsável decisão pastoral, socio-religiosa, canónico-jurídica e teológica, algumas considerações podem ser ainda aqui retomadas, em jeito de reflexão final e síntese do muito que sobre isto se tem dito, sem escamotear o que ainda faltará sublinhar...

4. Só uma corajosa e bem formada inteligência da fé e uma proporcional consciência real destas realidades podiam fornecer a todos, sem rodeios e falácias de argumentário indigente e servil, a devida percepção da estrutura global dos sistemas de signos e objectos, das suas lógicas e mais-valias, de uma ética da mostração diferencial nas suas múltiplas categorias de significação, e da dialéctica das apropriações e legitimações que neste campo de bens materiais e simbólicos, móveis e imóveis, sempre se articulam e amiúde digladiam!

– E é assim que vale pena recapitular já, incisiva e frontalmente, que a Imagem do Senhor Santo Cristo e os seus pertences patrimoniais identitários e sacralmente funcionais (v.g. o Resplendor) constituem um todo objectual unitário, que a Igreja, analogamente a outras instituições, para já nem falar no senso comum dos fiéis, tem “obrigação de respeitar”, com “zelo”, segundo as directrizes estipuladas pela Santa Sé e pela própria Conferência Episcopal Portuguesa quando ensinam e determinam nos Princípios e Orientações relativos à tipologia e finalidade deste género de bens, que a sua manipulação tem de olhar “à intenção do doador, de modo particular quando este tiver sido a comunidade crente”, para salvaguarda do “carácter sagrado” dos objectos religiosamente queridos e piedosamente venerados, “bem como o afecto que tem pelo valor em causa a comunidade que o utiliza e é sua proprietária”, cabendo ao Bispo “ajuizar das decisões que [os] afectem particularmente (...), sobretudo quando esteja em causa o seu valor material ou artístico, a sua natureza religiosa ou o apreço que a comunidade tem por ele”, respeitando-se ainda, para “usos em fins secundários, como exposições, (...) a maior sacralidade de alguns [desses objectos de culto ou sagrados], nomeadamente (...) imagens de grande devoção”, como é o caso do Senhor Santo Cristo, evidentemente!


Ora a este respeito creio que nada mais será preciso acrescentar hoje, embora deva relembrar, entre outros episódios historicamente tristes e didácticos, aquele que se passou nos Açores com as Irmandades do Espírito Santo (na década de 50 do século passado), salvaguardadas as diferenças que a todos deveriam fazer pensar nas semelhanças, para obviar mimeses e sequelas análogas nestas presumidas “modernidades” eclesiásticas e “dadas às artes” (e a algumas artimanhas), impantes e laicistas nos seus cosmopolitismos turisteiros (ou apenas voyeuristas) – quando não encarreirados nas academias e nas administrações públicas e estatais –, para dessacralização gratuita e primária de certos símbolos (ditos “retrógrados” ou “arcaicos”), porém apenas para (re)investimentos duvidosos, fúteis ou sinistramente iconoclastas noutros signos, mitologias e processos mais ou menos (in)conscientes e inconsistentes de substituição ou transferência “progressista”, “esclarecida” ou até – imagine-se – insensata e confusamente ditos sociopolítica, estética e secularmente “libertadores”!

* Fotos de José António Rodrigues/Latras Lavadas/Publiçor (2013).
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Em Azores Digital:






















e Jornal "Diário dos Açores"
(Ponta Delgada, 07.06.2014):
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Outra Versão do Texto:
Dessacralização de Símbolos

Nem sempre abordado do mais exigível, fundamentado e aprofundado modo (quando não até degenerando para terrenos que extravasam essencial e legítima tematização) –, a conflitual subtracção temporária do Resplendor do Senhor Santo Cristo ao conjunto constituinte da integridade iconicamente sacralizada da sua Imagem, para fins de exposição artístico-museológica, bem que merece reflexão urgente e necessária na Igreja e em toda a sociedade açoriana...

Ora para além do mais que aqui não pode ser teórico-criticamente desenvolvido sobre espaços, tempos e retóricas de Museologia aplicada e de Arte Sacra e Profana, que mais dizer de um assunto que deve ser levado a sério por tudo o que revela, ou dissimula, da vida colectiva, dos imaginários espirituais (religiosos e profanos) e da hodierna configuração de valores, pensamentos e atitudes que estruturam mentalidades, práticas e discursos do povo açoriano, das suas supostas (decadentemente abúlicas ou medíocres) “elites”, classes e corporações, agentes e actores societários?

– Pois vale ao menos recapitular já que aquela Imagem, com os seus pertences patrimoniais identitários e sacralmente funcionais, constitui um todo objectual unitário, que a Igreja, analogamente a outras instituições, para já nem falar no senso comum dos fiéis, tem “obrigação de respeitar”, com “zelo”, seguindo as directrizes da Santa Sé e da CEP quando ensinam e determinam, relativamente à tipologia e finalidade desse género de bens, que a sua manipulação tem de olhar “à intenção do doador, de modo particular quando este tiver sido a comunidade crente”, para reserva do seu “carácter sagrado”, religiosamente querido e piedosamente venerado, “bem como o afecto que tem pelo valor em causa a comunidade que o utiliza e é sua proprietária”, cabendo ao Bispo “ajuizar das decisões que [o] afectem (...), sobretudo quando esteja em causa o seu valor material ou artístico, a sua natureza religiosa ou o apreço que a comunidade tem por ele”, respeitando-se enfim e só assim para “usos em fins secundários, como exposições, (...) a maior sacralidade de alguns, nomeadamente (...) imagens de grande devoção”, como é o caso, evidentemente!
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Em "Diário Insular"
(Angra do Heroísmo, 07.06.2014):


























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