A Dessacralização dos Símbolos
e o Resplendor da Imagem Sacra
1. Com crescente impacto socio-religioso, pastoral, eclesial e
mediático – muito embora nem sempre abordado do mais exigível, sério,
fundamentado e aprofundado modo (quando não até degenerando para terrenos que extravasam a mais essencial e legítima tematização
competente) –, o caso da controversa subtracção
temporária do Resplendor do Senhor Santo Cristo ao conjunto das peças
constituintes da integridade iconicamente
sacralizada da Imagem e do respectivo Tesouro, para declarados fins de exposição artístico-museológica em
Lisboa), bem que deveria merecer reflexão
urgente e comprovadamente necessária na Igreja e em toda a sociedade
açoriana...
– E se dúvidas houvesse sobre as melindrosas e evidentes complexidades (teológico-pastorais,
filosóficas, histórico-sociológicas, simbólicas e antropológico-culturais)
deste escusado imbróglio; das conflituais
reacções que tem provocado; das díspares
leituras (nalguns casos despudoradas, levianas ou irresponsáveis) que
suscitou, e das significativas lacunas –
outrossim desejavelmente integradas, multidisciplinares e sistemáticas – de abordagem e de compreensão verificáveis
nesse campo (mas que não foram ainda devidamente accionadas por quem teria esse
indeclinável dever de múnus e/ou a correlativa responsabilidade de estudo,
saber e conhecimento) –, logo bastaria, para avaliação integral e conscienciosa de tudo isto, auscultar as Redes
Sociais, folhear a Imprensa terceirense e micaelense (com destaque para os
pertinentes textos de Santos Narciso e Manuel Moniz), ou ter visto e ouvido a Rádio
e a Televisão regionais, onde, por entre noticiários pontualmente atentos,
entrevistas e reportagens, tiveram lugar alguns elucidativos debates (com
realce para os depoimentos comoventes de Carlos Faria e Maia, e para as formulações
sociológicas objectivas de Álvaro Borralho, ambas aliás em precisões e registos
complementares e só aparentemente opostos...).
Ora – para além do mais que aqui
não pode ser teórico-criticamente desenvolvido sobre espaços, tempos e retóricas de Museologia aplicada e de
Arte Sacra e Profana –, que dizer de quanto este assunto merece ser levado a sério por tudo o que sintomaticamente revela,
ou dissimula, da vida colectiva, dos imaginários espirituais (religiosos e
profanos) e da hodierna configuração
de valores, pensamentos e atitudes que estruturam mentalidades, práticas e
discursos do povo açoriano, das suas supostas (porém decadentemente abúlicas ou
medíocres) “elites”, classes e corporações, agentes e actores societários?
2. Conforme sublinhei anteriormente, de entre as várias formas
expressivas da religiosidade e da fé religiosa católica nos Açores, o
Culto ao Senhor Santo Cristo ocupa lugar único e absolutamente distinto, sendo
mesmo que – das diversas devoções que
nestas ilhas foram ganhando e perpetuando vigências espirituais, históricas,
socioculturais e festivas (populares,
eclesialmente integradas ou parcialmente autónomas face à hierarquia institucional da Igreja e ao Poder
secular) – as venerações de cariz
crístico ou representação cristológica
(direccionadas à figura e à figuração
iconográfica, pictórica ou escultórica de Jesus Cristo, estão presentes e são
praticadas quase em todos os nossos lugares e contextos existenciais insulares e telúricos de crença,
inconsciente e memória colectiva, reflectindo também conaturalmente as marcas
das sucessivas e hegemónicas modelações
tardo-medievais, contra-reformistas e barrocas da Evangelização no Arquipélago
(especialmente por via dos Franciscanos e dos Jesuítas, com tudo o que
histórico-dogmaticamente os seus carismas, variantes de espiritualidade,
doutrina, formatos de prece e corporizações rituais, cultos e liturgia,
determinações canónicas, etc., implicaram, a par, não negligenciável, de regimes de imposição dogmático-pastoral
e de padronização normativa).
– E foi deste modo que a
proliferação cultual e votiva, reflectida
sob arquetípica forma revelacional no Ecce
Homo – ou seja, na feição dolorosa, passionária e sofredora de um ícone universal representativo do Homem das Dores – conseguiu, como
nenhuma outra devoção portuguesa e açoriana – exceptuando as Festas do Espírito
Santo! – grandes, profundas e significativas dimensões, polarizando e
acumulando depois no Senhor Santo Cristo, devido à superiormente sustentada e específica
acção pessoal, e à posteridade venerante
de Madre Teresa da Anunciada, tudo quanto nele permanece perfeitamente identificável e ritualizado de modo ímpar
e apelativo, tanto no recesso conventual do
Santuário da Esperança como nas tradicionais manifestações festivas públicas, religiosas e profanas, nos Açores e nas
Comunidades Açorianas, mas grandiosa e especialmente na ilha de S. Miguel, em
sua cíclica honorificação.
3. Na altura em que escrevo esta Crónica, aguarda-se o regresso a
S. Miguel do Bispo D. António, que deverá reunir com as entidades mais
directamente ligadas ao Santuário da Esperança, no sentido de procurar-se um possível consenso pacífico que possa,
com a desejável e prudente revogação da primeira decisão
diocesana, impedir que o Resplendor da Imagem seja deslocado para a referida
mostra (alegadamente com medidas de
segurança asseguradas, conquanto constituindo estas apenas uma das muitas e justificadas razões a ter em conta numa proporcionalmente descontextualizada situação
como a da planeada exposição e sua arbitrária
narrativa e implantação artístico-museológica profana!).
– Por outro lado, não deixa de
ser originalidade, neste quadro litigioso, saber-se que, no Santuário, se
prepara entretanto uma espécie de “objecção de consciência” em relação ao
próprio gesto prático-laboral de remoção física
do Resplendor da Imagem, o que acentuará simbolicamente as divergências
existentes... Seja porém como for que este assunto chegue a uma próxima, já tardia e responsável decisão pastoral,
socio-religiosa, canónico-jurídica e teológica, algumas considerações podem ser
ainda aqui retomadas, em jeito de reflexão final e síntese do muito que sobre
isto se tem dito, sem escamotear o que ainda faltará sublinhar...
4. Só uma corajosa e bem formada inteligência da fé e uma proporcional
consciência real destas realidades podiam fornecer a todos, sem rodeios e falácias de argumentário
indigente e servil, a devida percepção da estrutura global dos sistemas de signos e objectos, das suas lógicas e mais-valias, de uma ética da mostração diferencial nas suas
múltiplas categorias de significação,
e da dialéctica das apropriações e
legitimações que neste campo de bens
materiais e simbólicos, móveis e imóveis, sempre se articulam e amiúde
digladiam!
– E é assim que vale pena recapitular
já, incisiva e frontalmente, que a Imagem do Senhor Santo Cristo e os seus pertences patrimoniais identitários e sacralmente funcionais (v.g. o Resplendor)
constituem um todo objectual unitário,
que a Igreja, analogamente a outras instituições, para já nem falar no senso comum dos fiéis, tem “obrigação de
respeitar”, com “zelo”, segundo as directrizes estipuladas pela Santa Sé e pela
própria Conferência Episcopal Portuguesa quando ensinam e determinam nos Princípios e Orientações relativos à tipologia e finalidade deste género de bens, que a sua manipulação tem de olhar
“à intenção do doador, de modo particular quando este tiver sido a comunidade
crente”, para salvaguarda do “carácter sagrado” dos objectos religiosamente queridos e piedosamente venerados, “bem como o afecto que tem pelo valor em
causa a comunidade que o utiliza e é sua proprietária”, cabendo ao Bispo
“ajuizar das decisões que [os] afectem particularmente (...), sobretudo quando
esteja em causa o seu valor material ou artístico, a sua natureza religiosa ou
o apreço que a comunidade tem por ele”, respeitando-se ainda, para “usos em fins
secundários, como exposições, (...) a maior sacralidade de alguns [desses objectos de culto ou sagrados],
nomeadamente (...) imagens de grande
devoção”, como é o caso do Senhor Santo Cristo, evidentemente!
Ora a este respeito creio que
nada mais será preciso acrescentar hoje, embora deva relembrar, entre outros
episódios historicamente tristes e
didácticos, aquele que se passou nos Açores com as Irmandades do Espírito
Santo (na década de 50 do século passado), salvaguardadas as diferenças que a todos deveriam fazer pensar nas semelhanças, para obviar
mimeses e sequelas análogas nestas presumidas “modernidades” eclesiásticas
e “dadas às artes” (e a algumas artimanhas), impantes e laicistas nos seus cosmopolitismos
turisteiros (ou apenas voyeuristas) –
quando não encarreirados nas academias e nas administrações públicas e estatais
–, para dessacralização gratuita e
primária de certos símbolos (ditos “retrógrados” ou “arcaicos”), porém
apenas para (re)investimentos duvidosos, fúteis ou sinistramente iconoclastas
noutros signos, mitologias e processos mais ou menos (in)conscientes e
inconsistentes de substituição ou transferência “progressista”, “esclarecida”
ou até – imagine-se – insensata e confusamente ditos sociopolítica, estética e
secularmente “libertadores”!
* Fotos de José António Rodrigues/Latras Lavadas/Publiçor (2013).
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Em Azores Digital:
e Jornal "Diário dos Açores"
(Ponta Delgada, 07.06.2014):
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Outra Versão do Texto:
Dessacralização de Símbolos
Nem sempre abordado do mais
exigível, fundamentado e aprofundado modo (quando não até degenerando para terrenos que extravasam essencial e legítima tematização)
–, a conflitual subtracção temporária
do Resplendor do Senhor Santo Cristo ao conjunto constituinte da integridade iconicamente sacralizada da
sua Imagem, para fins de exposição
artístico-museológica, bem que merece reflexão urgente e necessária na Igreja e em toda a sociedade açoriana...
Ora para além do mais que aqui
não pode ser teórico-criticamente desenvolvido sobre espaços, tempos e retóricas de Museologia aplicada e de
Arte Sacra e Profana, que mais dizer de um assunto que deve ser levado a sério por tudo o que revela, ou dissimula, da vida colectiva, dos imaginários espirituais (religiosos e profanos) e da hodierna configuração de valores,
pensamentos e atitudes que estruturam mentalidades, práticas e discursos do
povo açoriano, das suas supostas (decadentemente abúlicas ou medíocres)
“elites”, classes e corporações, agentes e actores societários?
– Pois vale ao menos recapitular
já que aquela Imagem, com os seus pertences
patrimoniais identitários e sacralmente
funcionais, constitui um todo
objectual unitário, que a Igreja, analogamente a outras instituições, para
já nem falar no senso comum dos
fiéis, tem “obrigação de respeitar”, com “zelo”, seguindo as directrizes da
Santa Sé e da CEP quando ensinam e determinam, relativamente à tipologia e finalidade desse género de bens, que a sua manipulação tem de olhar
“à intenção do doador, de modo particular quando este tiver sido a comunidade
crente”, para reserva do seu “carácter sagrado”, religiosamente querido e
piedosamente venerado, “bem como o afecto que tem pelo valor em causa a
comunidade que o utiliza e é sua proprietária”, cabendo ao Bispo “ajuizar das
decisões que [o] afectem (...), sobretudo quando esteja em causa o seu valor
material ou artístico, a sua natureza religiosa ou o apreço que a comunidade
tem por ele”, respeitando-se enfim e só assim para “usos em fins secundários,
como exposições, (...) a maior sacralidade de alguns, nomeadamente (...) imagens
de grande devoção”, como é o caso, evidentemente!
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Em "Diário Insular"
(Angra do Heroísmo, 07.06.2014):
RTP-Açores: