As Agnosias Diocesanas
1. Conforme pude escrever há uma semana, na altura em que comecei a
perspectivar este texto aguardava-se ainda o regresso a S. Miguel do Bispo D.
António, sendo que o Prelado açoriano iria então reunir, como de facto o fez,
com entidades mais directamente ligadas ao Santuário da Esperança, no
expectável (mas todavia depois gorado!) sentido de procurar-se um consenso pacífico que pudesse, com uma desejável e prudente revogação da primeira decisão diocesana, impedir que o tão
contestado projecto da retirada e “empréstimo” temporário do Resplendor da
Imagem do Senhor Santo Cristo fosse por diante, desse modo evitando-se a
deslocação do mesmo para uma controvertida Exposição em Lisboa. Porém, quando
ia ultimando esta Crónica, soube-se que o Resplendor, sintomaticamente tinha já seguido de avião (http://www.diocesedeangra.pt/noticia_2166), bastante à socapa, encontrando-se depositado no Museu de Arte Antiga, até vir a ser “estudado”,
técnico-cientificamente dissecado e “exposto” numa mostra cuja data não está
definida...
– Não resta pois dúvida que tudo
se consumou (por certo com intermediários
governamentais regionais nunca assumidos...) com esse grande testemunho de expedita capacidade para híbridas acções: ademanes de arte fosca
e tosca, artimanhas palacianas e volteios de saia eclesiástica, com inspiração
sacro-securitária e sabedoria ratoneira; brilhante pérola de zelo
artístico-pastoral, compreensão sociocultural e museológica da fé, sem
quaisquer rebuços, tibiezas devocionais ou cedências às vozes do “retrógrado”,
“anacrónico” “fundamentalista” e “fanático” Povo
de Deus crente, carne para toda a
obra mas adorador de “imagens de pau” (na recente e ácida oratória pseudo-esclarecida
de alguns neo-conversos à nossa insular tardo-modernidade castrense, – pobres e
cegos néscios na atrevida ignorância das mediações sociológicas do Sagrado e
das antropologias fenomenológicas da Teologia e da Fé do Cristianismo!
E digo isto porque
quem sabe se no mais humilde devoto (“retrógrado”, “primitivo” e
“simplório”, não é?) não estará afinal mais
autenticidade e mais esperança do
que em muita corja clerical-mundana, anómala e hipocritamente apenas clericalizada para o que lhe dá
jeito e sustento!? E depois, entre os olhares e os gestos dos peregrinos
açorianos, os dos turistas “en bavardage” (curiosos mais ou menos basbaques, fúteis
voyeurs) e os supostos “especialistas”
em arte “sacra”, “liturgia” e quejandos, certamente o que a Igreja deveria era optar sempre pelos primeiros, respeitando-os
com sentido evangélico, paciência histórica e memorial sentido profundo da Tradição
e da piedade das gerações anteriores, porquanto foi com elas e com aqueles que rezou
e viu e sentiu a vida nas horas amargas da aflição e dos pedidos de perdão, com
mútuo arrependimento fundo!
– Sim, porque esses, ao menos esses, talvez pequeninos (e tão explorados e espoliados de tudo, como historicamente sempre foram!) não são peças artístico-museológicas facilmente descartáveis, profanáveis e tornadas insignificantes, a não ser, numa sociedade pagã ou sistemicamente descristianizada, por uma instituição degradada e degenerada que, como escrevia D. Albino Cleto, servisse já somente para “promotora de museus”, conservando ainda “o património que herdou” mas para “encerrá-lo num museu”, naquilo que seria tanto “um crime contra a sociedade” (se o deixasse destruir) quanto “um pecado contra a sua própria vocação” (se o encerrasse, despido, sem missão nem carisma vivos, pragmática e “culturalmente” travestidos num local de exibição museal)...
– Sim, porque esses, ao menos esses, talvez pequeninos (e tão explorados e espoliados de tudo, como historicamente sempre foram!) não são peças artístico-museológicas facilmente descartáveis, profanáveis e tornadas insignificantes, a não ser, numa sociedade pagã ou sistemicamente descristianizada, por uma instituição degradada e degenerada que, como escrevia D. Albino Cleto, servisse já somente para “promotora de museus”, conservando ainda “o património que herdou” mas para “encerrá-lo num museu”, naquilo que seria tanto “um crime contra a sociedade” (se o deixasse destruir) quanto “um pecado contra a sua própria vocação” (se o encerrasse, despido, sem missão nem carisma vivos, pragmática e “culturalmente” travestidos num local de exibição museal)...
2. Indiscutivelmente, assim, estamos agora perante um insólito e
espantoso marco ético-episcopal, “de valor patrimonial, cultural e histórico
que importa partilhar com toda a comunidade humana” (sic), no escandaloso e
distorcido arrazoado mediático desta Diocese e para perpétua memória da sua
actual cartilha de evangelização regional
autónoma, no entendimento
prudentíssimo e consciencioso do seu iluminado e ilustrado Prelado, da sua
clerezia conselheiral e dos seus doutos co-mentores... Um feito notável, sem
mácula nem nódoa (para usar o
doloroso termo de Santos Narciso), nem escrúpulo, nem motivo de escândalo, de
facto! Historicamente, portanto, um exemplo edificante para a Igreja que está
nos Açores, no País e no Mundo...
– Por outro lado, não deixa de
ser originalidade beatífica, neste
cenáculo litigioso e de um cinismo atroz,
propagandear-se que, no Santuário, quando constava que ia correr uma “objecção
de consciência” em relação à remoção
física do Resplendor da venerada Imagem (o que acentuaria simbolicamente as
apregoadas divergências), vir agora uma arenga de comunicação social diocesana
frisar ter contado a dita operação
transitária, tutelarmente fiscalizada pelo Senhor Bispo em pessoa, com “a
boa colaboração das irmãs que zelam pelo Tesouro” (sic)!
Ora neste momento, com tudo isto,
ganhou este assunto contornos universais –
que a mim me interessam sobremaneira e são ainda mais complexos (pelo que
aqui ficam apenas sinalizados e sobre os quais certamente muito se debaterá
depois com as apaixonantes questões permanentes da Arte Sacra, da Museologia
Religiosa e Eclesiástica, do estatuto dos Sacramentais – e talvez até, em
decorrência, dos próprios Sacramentos –, para além das pressuposições pastorais, da teologia
dos objectos de culto, da teologia
icónica e das imagens, e da ética da
conservação e da exposição, etc., etc.) –, mas sem esquecer que tudo isso há-de
ser pensado e repensado no contexto sociocultural,
devocional e católico dos Açores em geral e de S. Miguel em particular, numa
(una e única?) Diocese...
– Mas também, sem sombra de
dúvida nem brilho de metais preciosos e incalculáveis, antes por isso mesmo, é
que esta procissão diocesana, entre agnosias
de bradar aos céus, talvez ainda vá no adro, até porque não consta que
anéis, báculos, mitras, estatuárias de beija-pé, objectos benzidos ou alfaias bentas,
custódias, cálices e píxedes, etc., etc., possam ser todos colocados no mesmo nivelado museu das religiões... Ou então,
será que poderão identicamente (quem o afiançará?), a curto prazo, também vir a
ficar ao lado do Resplendor, sem vínculo
de devoção nem estrutura interna e integrada
de representação, em indiferenciada narrativa e museologia profana, irrecuperavelmente
dessacralizados numa montra-vitrine
iconoclasta, perante a qual ninguém
reza nem ajoelha, em piedosa devoção, crença e fé, Razão e Coração?!
3. Finalmente e
para fecho deste confrangedor assunto, não podemos deixar de fazer referência
aqui à iniciativa (diligentemente fundamentada, em si louvável e perfeitamente
compreensível) do deputado Joaquim Machado (PSD-A) ao apresentar na ALRAA um Projecto de Decreto Legislativo Regional
– subscrito pelos restantes partidos da Oposição e depois dito como
eventualmente também sustentável pelo PS –, visando atribuir à Imagem e ao Tesouro do Senhor Santo
Cristo a designação (e decorrente estatuto prático, evidentemente) de “Tesouro
Regional”, porquanto os mesmos objectos sacro-religiosos, “propriedade da
Diocese de Angra e Ilhas dos Açores”, se revestem “de valor especialmente
simbólico para a Região e [tem] inequívoco valor regional”.
– Ora como se nota por este indubitavelmente bem intencionado projecto político-parlamentar,
o problema da existência e do destino
dos pertences do Senhor Santo Cristo (património e inalienável propriedade da
Igreja nas entidades orgânicas do
Convento e do Santuário da Esperança) poderá tornar-se, por via de uma sua eventual aprovação simplista, bem mais
complexo do que parece, para além de poder ser uma espécie de arma de “dois
gumes” que convirá temperar com apurada
segurança legislativa e co-responsabilização
inter-institucional, porquanto aí poderão estar implicadas matérias que
envolvam vertentes jurídico-constitucionais, de Direito Canónico e da própria
Concordata (verbi gratia Artigos 23 e
24), – contornos que não escaparão, por certo, às pupilas políticas e aos
melhores consultores jurídicos dos deputados da ALRAA, tal como, depois, não
deverão por certo escapulir-se ao minucioso
escrutínio e qualificadas prerrogativas do Gabinete do Representante da
República...
E isto mesmo – para fechar este assunto –, sem falarmos de
questões como as de saber qual o estatuto
das futuras esmolas ou dádivas (v.g. jóias ou outros valores que venham a
ser oferecidos a Santo Cristo); que implicações
(técnicas, financeiras, logísticas, estruturais e físicas...) tal
classificação trará aos moldes
estruturais de arrumo, guarda, conservação e gestão do Tesouro, e aos meios humanos necessários e habilitados
para tal; que (des)obrigações advirão
para a antiga e sempre acalentada construção
do Museu de Arte Sacra ou Eclesiástica (o que não é a mesma coisa), ligado
ao Convento e ao Santuário; que abdicação, cedência ou compartilha de administração tal estatuto poderá
implicar, no que se refere nomeadamente aos papeis da Reitoria do Santuário e
da Irmandade; que reservas, ou recursos de alçada
patrimonial última e sua preponderante ou primacial gestão corrente (museológica, sacra, litúrgica, festiva, etc.)
caberão às partes “contratantes” (consultadas já e concordantes ambas?), e
doravante “sócias” ou “associadas” em múltiplos cultural business, usufrutos possíveis, proventos monetários
advenientes, etc., etc; – enfim, tudo questões que terão, ainda por cima, de
ser devidamente equacionadas por
relação ao enquadramento legislativo
considerado e ali invocado (concretamente, o disposto no nº 2 do artigo 10º
do Decreto Legislativo Regional nº 29/2004/A, de 24 de Agosto, alterado e
republicado pelo Decreto Legislativo Regional nº 43/2008/A, de 8 de Outubro), e
cujos potenciais alcances e constrangimentos, positivos e negativos, a prazo
incerto, não poderão ser esquecidos por ninguém com inteligência histórica e
prudência jurídico-institucional (quando não com mitra e anel episcopais...) na
cabeça e no coração da nossa Diocese e dos nossos Açores!
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 14.06.2014):