Direito, Política e Cultura
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1. A polémica que veio a lume nos jornais e nas redes sociais à
volta de um espectáculo/workshop de “danças de ventre” – encenado no Coro Alto
da igreja de Nossa Senhora da Guia, também conhecida como de S. Francisco ou do
Museu de Angra –, embora tenha caído em alguns despiques fulanizados e inconsequentes
(por relação ao que verdadeiramente interessava
ver reflectido e debatido), teve ao menos o mérito de chamar a atenção para
duas questões de fundo: uma de ordem jurídico-institucional e política; outra
de ordem cultural, simbólica e programática...
– Enquanto aguardamos a
divulgação completa de novas e firmes reacções individuais e institucionais (v.g.
de agentes partidários e da Diocese de Angra), e tal como tive ocasião de
escrever há uma semana neste jornal, valerá ainda a pena proceder a uma releitura crítica de toda a Entrevista
que Mário Cabral concedeu ao “Diário Insular”, já pelo ali notório entendimento
da complexa e articulada conjugação de
problemáticas, factores e valores, para além – evidentemente, como salientei –,
de outras complementares questões formais,
de lisura e ética societárias, de responsabilidade institucional e, enfim, de agenda
política e de gestão pública (governamental e superiormente avalizadas?)
de Cultura e Educação.
2. No meu texto anterior, que parcialmente retomo hoje (17 de
Setembro) para recentrar o tema, tive ensejo de realçar que toda esta controversa
matéria deveria ter sacudido e despertado logo, contra incríveis e renitentes delongas ou confrangedores alheamentos, a reabertura
actualizante e a resolução imediata
do inadmissível protelamento e/ou incumprimento do imbróglio jurídico-político que pende sobre o Museu de Angra e o
usufruto da sua igreja, conforme competentemente historiado e clarificado pelo Dr. Álvaro Monjardino – em 05.02.1994
– num Parecer importante (mas que
dormia esquecido ou ignorado...) para
a compreensão de uma das perspectivas de fundo que volvemos a lembrar
aqui com a elucidativa transcrição das suas mais elucidativas passagens.
– Assim: “A
Direcção Regional dos Assuntos Culturais achou-se confrontada com um problema
relativo à propriedade da igreja de Nossa Senhora da Guia, anexa ao antigo
convento de São Francisco, a qual, a julgar por um ofício (nº 72793, de 10 de
Novembro) provindo da Câmara Eclesiástica da Diocese de Angra, não pertencia ao
Estado. A este ofício se seguiu um outro (nº 81/93, de 22 de Dezembro), agora
dirigido ao Director do Museu de Angra do Heroísmo, em que lhe é comunicada uma
provisão do Bispo de Angra [então o saudoso D. Aurélio Granada Escudeiro], de 7
de Dezembro de 1993, nomeando um capelão para a referida igreja de Nossa
Senhora da Guia.
“ (...) À
Direcção Regional dos Assuntos Culturais e ao próprio Museu de Angra do
Heroísmo interessa uma definição do actual estatuto da igreja de Nossa Senhora
da Guia, em termos de propriedade e, acessoriamente, em termos do próprio uso,
seja ele pelo próprio Museu, seja por outra entidade, designadamente a
Fraternidade referida [Ordem Terceira de São Francisco de Angra do Heroísmo]”.
– E depois de
proceder a uma minuciosa destrinça histórico-legislativa que apura serem “o
edifício do extinto convento de São Francisco, com a sua igreja”, “em termos de
propriedade”, pertencentes à Região Autónoma dos Açores – pelo que esta pode
conceder, ou pôr termo, à respectiva concessão
a outros da mesma igreja (no caso à citada Ordem Terceira) –, o Parecer do jurista angrense salienta e conclui
pelo seguinte:
“Porém (...)
outra coisa será poder afectar aquele templo (...) a outros fins que não sejam
do culto católico. Este é um aspecto do uso
pelo proprietário que deve
ser também posto em relevo.
“Na verdade, o
art. VII da Concordata (...)
veda ao Estado (e, consequentemente, à Região) o destinar para outro fim que não seja o desse mesmo culto qualquer templo sem o acordo prévio da
Autoridade eclesiástica”, sendo esta “uma importante limitação ao próprio conteúdo do direito de
propriedade, na medida em que, por via de um texto de direito
internacional, se condicionaram e restringiram as faculdades de uso do proprietário”,
– restrição formal e material esta
que “não pode deixar de estar presente em quaisquer decisões que, futuramente,
a Administração regional venha a tomar relativamente à igreja de Nossa Senhora
da Guia do antigo convento de São Francisco de Angra”...
3. Ora este texto de Álvaro Monjardino foi
elaborado durante a vigência e para o V
Governo Regional dos Açores presidido por Mota Amaral, sendo Aurélio da
Fonseca secretário da Educação e Cultura, Vítor Duarte director regional dos
assuntos culturais, e José Olívio Rocha director do Museu de Angra.
Todavia e a
propósito deste exemplar documento – apesar da fundamentação jurídica e
histórica de Álvaro Monjardino se reportar, natural e situadamente, à ordenação
nacional e internacional vigente em
1994 (daí a remissão para o art. VII da Concordata de 1940, em vigor naquela
data) –, convirá elucidar que nem por isso a
substância e o fundamento dos argumentos nele aduzidos deixam de valer contemporaneamente, na exacta medida
em que a nova Concordata (assinada em 2004) é bem explícita sobre idênticas matérias de facto e de jure, mormente nos Artigos 23.º e 24.º que consagram os mesmos princípios e regras do anterior
documento concordatário entre a Santa Sé e a República Portuguesa. E deste
modo, logo no § 1 do art. 24.º, diz-se expressamente o seguinte:
– “Nenhum templo, edifício, dependência ou
objecto afecto ao culto católico pode
ser (...) ocupado, (...) ou destinado pelo Estado e entidades públicas a outro fim, a não ser mediante acordo prévio com a autoridade
eclesiástica competente e por motivo de urgente necessidade pública”... E isto
para nem invocarmos aqui as normas dispostas no art. 7.º da mesma Concordata,
exigindo que Portugal assegure “as medidas necessárias à protecção dos lugares de culto (...), para evitar o uso ilegítimo de práticas ou meios católicos”!
Colocado assim o
problema nos moldes que a nós primeiro e essencialmente nos interessou
despoletar, ou seja no devido quadro
institucional e político-cultural da Diocese e do Governo Regional – bem
entendido, com as inerentes hierarquias e tutelas (assumidas?) e em cujas sedes, neste caso, cúmplice e impunemente
imputáveis, não estão a ser
acautelados nem respeitados nenhuns imperativos jurídicos e regras
político-administrativas (fazendo-se até, imagine-se, uma abusiva e agiota exploração monetária da Irmandade
Franciscana!) –, restará de seguida aprofundar, sistemática, didáctica e
criticamente, a razoabilidade programático-cultural,
a adequabilidade simbólico-espacial e a dedutível legitimidade da realização arbitrária de alguns tipos de actividade
naquele espaço de culto activo e não despido de memória religiosa nem alienado de imaginário devocional católico, como é
fundamental sinalizar sempre.
– Esta é a assim
a segunda questão de fundo a merecer
análise aprofundada, por quanto aí também se reclama de abalizada compreensão antropológico-cultural (dir-se-ia mesmo ética
e cientificamente sólida, além de competentemente museológica), até para fins
de coerente e respeitosa fidelidade às exigências teórico-práticas de um outro entendimento civilizacional e axiológico que queira e saiba respeitar e promover a comunidade
açoriana, na medida do possível com qualidade, prudência e sensatez, sem malévolas esquadrias (intencionais véus e aventais...) de irresponsáveis,
reincidentes e despudoradas investidas materiais
ou figurativas, cuja violência simbólica e niilista é muito mais grave e planeada do que possa parecer!
4. [A 2.ª edição deste texto, tal como publicado em Azores Digital e RTP-Açores, incluiu este parágrafo, entretanto publicado separadamente no jornal "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 20.09.2014), com o título "As Mãozinhas de Cera"].
Mesmo ao fechar do meu texto que o DI publica amanhã, recebi notícia de que a Igreja (Ouvidoria da ilha Terceira...) decidira pronunciar-se, em termos incisivos, sobre o momentoso problema da programação lúdica e artístico-dançante “de ventre” e demais contorcidos pontos da agenda político-cultural do Museu de Angra.
4. [A 2.ª edição deste texto, tal como publicado em Azores Digital e RTP-Açores, incluiu este parágrafo, entretanto publicado separadamente no jornal "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 20.09.2014), com o título "As Mãozinhas de Cera"].
Mesmo ao fechar do meu texto que o DI publica amanhã, recebi notícia de que a Igreja (Ouvidoria da ilha Terceira...) decidira pronunciar-se, em termos incisivos, sobre o momentoso problema da programação lúdica e artístico-dançante “de ventre” e demais contorcidos pontos da agenda político-cultural do Museu de Angra.
Todavia, para além do pertinente conteúdo dessa louvável e firme deliberação
dos padres diocesanos, deve salientar-se ter sido o seu “voto de protesto e
repúdio” dirigido directamente ao
presidente do Executivo regional, facto que é revelador de cepticismo face à
restante hierarquia e às várias tutelas (governamentais,
político-institucionais e logísticas)
ali comprometidas!
Entretanto chegou-nos o documento da magnífica iniciativa do CDS-PP (Félix Rodrigues), ao
entregar na ALRA, com “carácter de urgência”, um minucioso e certeiro Requerimento sobre o mesmo intrincado e
acobertado imbróglio. Assim sendo, e por aquilo que agora podemos avaliar em
detalhe, tais posições – e outras que se espera venham a lume! –, devem ser
conhecidas, divulgadas e integralmente respondidas em toda a sua justificada importância, tanto mais
quanto o assunto ganhou já dimensão nacional.
– Ora perante tudo isto,
acanhados e negligentes silêncios (silenciamentos?)
governamentais, político-partidários e episcopais, sem exigíveis e decorrentes responsabilizações, demissões ou remissões,
atingirão as raias de autênticos escândalos
e cumplicidades intoleráveis, não fosse esta uma boa ocasião para apurar-se
até onde irão a força ou insignificância de tanto prócere e apparatchik desta governança e seus
centros e (des)mandos de poder, quando antes, tão enfatuadamente, os mesmos
(quais Acácios ou Calistos...), tanto apontavam empertigados dedinhos de cera à cabeça e aos pés
alheios quanto o faziam ao alugável e incoerente ventre dos seus prezados
desejos, sentenciando sempre, mas de
cátedra, sobre préstimos, virtudes e vícios da Autonomia – quais servos de
avental na copa, vestais de templo ou meninas raptadas em serralho... –, para,
ao final, merecerem apenas poisos de
fachada na galeria histórico-cultural desta “choldra”, como dizia o nosso
Eça!
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Em RTP-Açores:
http://tv2.rtp.pt/acores/index.php?article=37598&visual=9&layout=17&tm=41;
Azores Digital:
http://www.azoresdigital.com/colunistas/ver.php?id=2723:
“Diário dos Açores” (Ponta Delgada, 20.09.2014):
http://tv2.rtp.pt/acores/index.php?article=37598&visual=9&layout=17&tm=41;
Azores Digital:
http://www.azoresdigital.com/colunistas/ver.php?id=2723:
“Diário dos Açores” (Ponta Delgada, 20.09.2014):