O Direito e as Danças de Ventre
Merece nova leitura, reflexão crítica e acrescido respeito a recente Entrevista que Mário Cabral (MC) concedeu ao “Diário
Insular” (DI) sobre as "danças de ventre" realizadas no Coro Alto da igreja de Nossa Senhora da Guia (também conhecida por igreja de S. Francisco).
– Seu amigo e vizinho em S.
Mateus (onde, tal como na minha Praia da Vitória, não se tolera que nos vomitem
à porta ou conspurquem os barcos...), partilho com MC a fé e a inteligência da fé do Cristianismo e o gosto por
Filosofia, Literatura, Teologia e Arte, apesar das diferentes formações e
linhas de pensamento e acção; todavia, reconheço-lhe seriedade pessoal,
integridade e nobreza de carácter, assumpção de crenças e ideias próprias,
qualificação intelectual e méritos académicos e profissionais.
As lúcidas respostas de MC às
pertinentes e incisivas perguntas do DI mostram íntegro entendimento da complexa e articulada conjugação das
problemáticas ali em presença (situações e valores culturais, religiosos,
civilizacionais, artísticos, simbólicos, museológicos, memoriais, patrimoniais
e identitários), para além – evidentemente – de complementares questões cívicas, de ética social, responsabilidade institucional
e de política e gestão públicas da
Cultura e da Educação (escolar e de cidadania!).
Porém essa Entrevista, que em
consequência mais deveria ter sacudido
e despertado já, contra incríveis alheamentos político-parlamentares e
governamentais que persistem, a reabertura
e resolução imediatas do inadmissível
protelamento do velho e pendente imbróglio
jurídico-político que se arrasta há décadas sobre o Museu de Angra e a
igreja de Nossa Senhora da Guia (conforme competentemente historiado e clarificado pelo Dr. Álvaro Monjardino, em 05.02.1994,
num Parecer talvez (des)conhecido
e/ou ainda recordado pela Administração Regional e pela Diocese)...
Por ser importante para a
compreensão da perspectiva que estamos levantando, aqui transcrevemos duas
elucidativas passagens da referida Consulta,
sendo a primeira do início do texto e a segunda da sua parte final. A saber:
– “A Direcção Regional dos
Assuntos Culturais [do V Governo Regional dos Açores presidido por Mota Amaral, sendo Aurélio da Fonseca secretário da Educação e Cultura, e Vítor Duarte o respectivo director regional da Cultura] achou-se confrontada com um problema relativo à propriedade
da igreja de Nossa Senhora da Guia, anexa ao antigo convento de São Francisco,
a qual, a julgar por um ofício (nº 72793, de 10 de Novembro) provindo da Câmara
Eclesiástica da Diocese de Angra, não pertencia ao Estado. A este ofício se
seguiu um outro (nº 81/93, de 22 de Dezembro), agora dirigido ao Director do
Museu de Angra do Heroísmo [então José Olívio Rocha], em que lhe é comunicada uma provisão do Bispo de
Angra [D. Aurélio Granada Escudeiro], de 7 de Dezembro de 1993, nomeando um
capelão para a referida igreja de Nossa Senhora da Guia.
“ (...) À Direcção Regional dos
Assuntos Culturais e ao próprio Museu de Angra do Heroísmo interessa uma definição
do actual estatuto da igreja de Nossa Senhora da Guia, em termos de propriedade
e, acessoriamente, em termos do próprio uso, seja ele pelo próprio Museu, seja
por outra entidade, designadamente a Fraternidade referida [Ordem Terceira de
São Francisco de Angra do Heroísmo]”.
E depois de proceder a uma
minuciosa destrinça histórico-legislativa que apura serem “o edifício do
extinto convento de São Francisco, com a sua igreja”, “em termos de
propriedade”, pertencentes à Região Autónoma dos Açores – pelo que esta pode
conceder, ou pôr termo, à respectiva concessão a outros, no caso à citada Ordem
Terceira, da mesma igreja –, o Parecer
do jurista angrense salienta e conclui pelo seguinte:
– “Porém (...) outra coisa será
poder afectar aquele templo (...) a outros fins que não sejam do culto
católico. Este é um aspecto do uso pelo
proprietário que deve ser também posto em relevo.
“Na verdade, o art. VII da
Concordata [entretanto revista em 2004, mas cujos artigos, v.g. o 23.º e o 24.º, consagram os mesmos princípios e regras!] (...) veda ao Estado (e,
consequentemente, à Região) o destinar
para outro fim que não seja o desse
mesmo culto qualquer templo sem o acordo prévio da Autoridade eclesiástica.
“ (...) Ora esta é uma importante
limitação ao próprio conteúdo do direito
de propriedade, na medida em que, por via de um texto de direito
internacional, se condicionaram e restringiram as faculdades de uso do
proprietário.
“Esta limitação não pode deixar
de estar presente em quaisquer decisões que, futuramente, a Administração
regional venha a tomar relativamente à igreja de Nossa Senhora da Guia do
antigo convento de São Francisco de Angra”...
– Assim e perante tudo isto, se
muitos dos alheados cidadãos e medíocres
agentes e actores partidários (medrando
nesta indigente sociedade insular), a par de outros tantos cegos e néscios clérigos (que por aí pastoreiam rebanhos
de fiéis abúlicos ou sonâmbulos (sem liderança
nem pastores à altura), conscientemente pensassem
e agissem mais, dançando menos na corda bamba dos seus larvares umbigos ou
no varão das suas infecundas cobardias, talvez nunca tivéssemos chegado aos
escândalos, afrontas, impunidades e impasses que a todos agora comprometem,
revoltam e envergonham!
________________
Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 16.09.2014):