A Ternura e o Vigor de Assis
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Atendendo ao actual contexto (e com uma compreensível dose de bom humor...), pede-me um “irmão
franciscano” – apesar, diz ele, com alguma razão, da minha “formação ser mais
acentuadamente próxima e de predilecção pelos autores tomistas da Escola
filosófica e teológica dos Jesuítas” (sic) –, que recupere hoje o tema de fundo da minha Crónica sobre S.
Francisco que o DI publicou há uma semana, e que pelo seu carácter
relativamente sucinto e sumariado “talvez valesse a pena retomar”!
É o que farei com gosto, desenvolvendo hoje um pouco mais o mesmo assunto .[Nota prévia inserta na publicação deste mesmo texto na edição do jornal "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 12 de outubro de 2014)].
É o que farei com gosto, desenvolvendo hoje um pouco mais o mesmo assunto .[Nota prévia inserta na publicação deste mesmo texto na edição do jornal "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 12 de outubro de 2014)].
1. Numa feliz coincidência de calendários litúrgicos,
técnico-profissionais e societários, comemorámos no passado dia 4 de Outubro a Memória de S. Francisco, o Dia Mundial do Médico Veterinário e o Dia Mundial dos Animais – data (neste
último caso) escolhida em Florença, em 1931, durante uma Convenção de
Ecologistas, atendendo ao característico e universalmente consagrado “padroado”
do poverello de Assis.
– E é assim que para além do profundo significado e alcance ético e deontológico (que
naquele dia se relembra e devia traduzir-se
nas práticas do quotidiano, no respeito ontologicamente
proporcionado por todas as criaturas e eco-bio-sistemas, e identicamente
no desempenho daquela especialidade biomédica), a todos se exortou e convidou à
renovação (dir-se-ia propriamente trans-física
e trans-especista, quando não mesmo metafísica) da sensibilidade racional e antropológica, da atenção afectuosa, da inteligência
compassiva e do cuidado vital que à espécie humana cabe, de e para com todos os outros
seres e forças da Vida e da Consciência que povoam e co-habitam o planeta
Terra...
2. Todavia, no que a S. Francisco particular e referencialmente
respeita – como se dizia no pórtico de uma bela Antologia organizada por Frei
Adelino Pereira) com Testemunhos
Contemporâneos das Letras Portuguesas (Lisboa, INCM, 1982) sobre o autor dos Fioretti –, caberia logo recordar que “o Pobrezinho que deixou
marcas indeléveis na história religiosa e cultural do mundo pós-medieval e
especialmente na portuguesa [e também, acrescentemos aqui, de modo muito
relevante, no Povoamento, na Evangelização e no Imaginário das Ilhas dos Açores]”,
propôs-nos fundamentalmente uma
“maneira singularíssima de ser homem e de viver a vida”, uma “forma original de
estar no mundo, de pensar a existência e de valorar as coisas”, naquilo que
constitui a exemplar visão franciscana da
vida!
Ora verdadeiramente naquela obra
– que reúne personalidades tão diferentes como Sophia e Urbano Tavares
Rodrigues, Raul Rego e Amândio César, Jacinto do Prado Coelho e João Maia,
Agostinho da Silva e Manuel Alegre, Agustina e Fernando Namora, Borges de
Macedo e António Borges Coelho, Gama Caeiro e Vergílio Ferreira, Moreira das
Neves e Miguel Torga, etc. –, não faltam eloquentes
textos (e insuspeitas confissões
em prosa e verso...) da presença
interior, histórico-cultural, religiosa, humanística, simbólica e espiritual daquele
filho do rico comerciante Bernardone, primeiro chamado João, lá desde os fins
do século XII e daquela cidade de Assis, na antiga Úmbria, com “um pouco de sol
da Provença, de terra lavrada pelo encanto trovadoresco, pela ternura delicada
e fidalga, pela saudável e casta alegria das Cortes de Amor”.
– E foi mesmo desse modo que
entre nós escreveu o filósofo Leonardo Coimbra, a par de tantos outros em
múltiplos tempos e lugares, estilos e modos, na reminiscência colectiva popular e erudita, e nas narrativas e
múltiplas representações de tudo
quanto em Francisco, conforme dizia outro Leonardo [o teólogo Boff], confluiu e
permanece de ternura e vigor e de um novo enraizamento afectivo, compassivo e
cósmico: humilde e paciente (mas sem
resignação perante o Mal e os males
do mundo); pobre (mas não submisso face
à exploração dos Pobres); resistente ao Sofrimento (mas sem dolorismos masoquistas nem cumplicidade com sadismos opressivos), e – enfim – simultaneamente amante (integrativo mas diferenciador) do varonil
e do feminino (sem misoginia nem feminismos estéreis), tal como
fascinantemente afinal podemos ver espelhado na pura e transfigurante relação
enamorada de Francisco (1182-1226) e da sua tão dilecta Clara (1193-1253), ela própria que,
quando jovem donzela, “desejava com frequência senti-lo e vê-lo”, tanto as palavras do seu amado lhe pareciam
“chamas”, quanto as obras dele se lhe revelavam quase
“sobre-humanas”...
De resto, como muito bem
sinalizaram António Quadros e Jaime Cortesão, o Franciscanismo é efectivamente
“uma das componentes da alma portuguesa”, sendo que – com Santo António de
Lisboa – até houve uma original e primaveril contribuição portuguesa, “quase desde a origem, para a formação do
ideal franciscano”, para além de ser a Língua Portuguesa natural e
expressivamente “lírica, franciscana, repassada de ternura e piedade”.
– Infelizmente, com certeza por
involuntário desconhecimento ou lamentável esquecimento, na excepcional galeria
de nomes constantes da bela Antologia que atrás referi, dos Açores, dos nossos
autores e das nossas paradigmáticas
heranças franciscanas apenas consta um poema
joaquimita de Natália Correia (“Tu que do Espírito em clara humanidade/ o
núncio foste de melhor idade, / vem com teu óleo sarar as nossas feridas”...),
porém (sem ir sequer aos mais antigos Cronistas, Diogo das Chagas, Monte
Alverne...) ou, mais próximo, a Côrtes-Rodrigues, ainda restavam, para a
contemporaneidade seleccionada, as evocações
memoriais e os cânticos de
Vitorino Nemésio, como este que sempre trago bem vivo, com a sua profundamente
sentida poética confessional:
“Do Cristo ao Servo, irmão do lobo e da água, /Cinco fios de sangue tensos vão, / Alto Morse da mágoa, / [...] Teia de amor, será gemido ou uivo o ouvido/ Clamor da doce aceitação?”)...
“Do Cristo ao Servo, irmão do lobo e da água, /Cinco fios de sangue tensos vão, / Alto Morse da mágoa, / [...] Teia de amor, será gemido ou uivo o ouvido/ Clamor da doce aceitação?”)...
3. Em todo o caso, e para o que aqui sobremaneira importa relevar –
na visão radicalmente assumida da existência
humana e da respectiva posteridade universal –, de Francisco de Assis
ficou-nos até hoje uma impoluta e timbrada aura
(ímpar, luminosa e transcendental...) projectada nos séculos, e para além
deles, nas gestas e carismas do Alter
Christus (e dos seus dolorosos
estigmas...), tal como, embora a outro nível mas em confluente horizonte, a mesma germinou
naquela alta expressão de Humanismo que a Civilização do Ocidente, através dos
seus melhores espíritos, procurou apontar,
assumir e amiúde incarnar como possíveis caminhos
e valores alternativos para toda uma
Humanidade decaída e dramaticamente perpetradora daqueles grandes crimes e pecados que
desvirtuaram tantas vezes, por acção
ou omissão, a Mensagem de Jesus, através de uma culpada e demencial violência religiosa, filosófico-teológica,
sociopolítica, económica e psico-simbólica que explorou, sacrificou ou destruiu
– mas também libertou! – vidas, consciências,
classes, raças, espécies, culturas e povos inteiros em todos os continentes da
Terra...).
– Talvez por isso, esperançosamente num Dia Novo, só a
Graça, o Perdão e a Misericórdia do seu Senhor conseguirão – com as obras e a fé dos Homens... –, redimi-la e justamente salvar!
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 11.10.2014):
e "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 12.10.2014):