Um Açoriano no Orpheu
ou A Expatriação de Violante
1. Com os Açores revendo-se demasiado em triviais e rotineiros subprodutos
político-culturais espelhados em liras de vulgar sonoridade, ou pasmados em
adoração de navios, aviões, tasquinhas e toiros..., está-se comemorando este
ano em Portugal e no Brasil o I Centenário do surgimento de Orpheu, cujo primeiro dos dois únicos Fascículos,
então aparecidos, foi lançado no primeiro trimestre de 1915 (embora um
terceiro, retomado por Arnaldo Saraiva, tenha acabado por chegar aos prelos, um
pouco extemporaneamente, em 1984).
– “Revista de Literatura”, de
início em sintonia luso-brasileira, editada por António Ferro e propriedade de
Orfeu, L.da, esta publicação, no seu N.º 1, tinha uma Direcção
bicéfala (Luís de Montalvôr, em Portugal; Ronald de Carvalho, no Brasil),
depois substituídos por Fernando Pessoa e Mário Sá-Carneiro.
Órgão do movimento chamado de Modernismo, nas páginas de Orpheu colaboraram, para além de Pessoa
e Sá-Carneiro, Alfredo Guisado, Côrtes-Rodrigues e a sua Violante de Cysneiros,
Almada Negreiros (com “Frizos”, em prosa), José Pacheco (autor do famoso
desenho da capa inaugural), Ângelo de Lima, Eduardo Guimarães, Raul Leal e
Santa Rita Pintor.
– Confluência de várias
sensibilidades pessoais e de diversos ideários e modelos estético-literários,
nem sempre muito definidos e delimitados nas suas fronteiras estilísticas, perfis,
formas, conteúdos temáticos e imaginários accionados (Modernismo, Simbolismo,
Futurismo, Sensacionismo, Paúlismo...), tinham todavia em comum aqueles escritores
e artistas da chamada Geração do Orpheu
uma declarada e turbulenta intenção
anti-tradicionalista (logo vincada em Pessoa, na sequência dos diferendos com Pascoaes
e A Águia), muito marcados que
estavam aqueles jovens por ascendências europeístas, anti-saudosistas,
anti-românticas, “vanguardistas”, “progressistas” e parisienses (mais
dramaticamente vividas por Sá-Carneiro), manifestamente iconoclastas, poeticamente
recriadoras e de afrontamento social e estético, todas afinal assumidas ou
inovadoramente experimentadas num Portugal e numa Europa cujas sombras
finisseculares e crises decadentistas tomavam novas projecções, contornos e
proporções naqueles (a)celerados anos que antecederam – e depois herdaram e
consumaram... – (i)memoráveis catástrofes
da Guerra, auroras e declínios filosóficos, literários, existenciais
e psíquicos, a par dos mecânicos rodopios
das velozes rodas de ferro, fogo e aço da moderna Civilização Europeia e do
seu Progresso (fatal progressão!) em
direcção aos Abismos da matéria, do espírito e do mundo que estavam já ali em trágica gestação e cujos gemidos, visões
e delírios ecoavam nas esotéricas tertúlias portuguesas...
2. Ora é neste contexto civilizacional e histórico-cultural, e
neste grupo literário-artístico que se integrará o nosso Armando
Côrtes-Rodrigues – “Transcendências nublóticas, metafísicas raras, [...]
Bizantinos jardins, onde a tarde agoniza”..., com a sua Violante de Cyneiros
(2.º Número de Orpheu) –, esse poeta,
amigo, correspondente e confidente maior e íntimo de Pessoa, que mais tarde
reconheceria terem então os seus projectos constituído “inesperada primavera
literária, que alarmou o convencionalismo pacato em que dormitavam as letras
daquela época”...
De resto, assim mesmo recordará
depois o escritor micaelense, numa assaz curiosa sinalização da sua posterior conversão insularmente reconfigurada:
“Entenda-se por Primavera, não uma quadra de serenidade florida, que irrompe de um dia para o outro em terras do continente, mas antes uma desvairada estação como a nossa, destas Ilhas, de sol radioso ou de céu cinzento, de mistura com chuvadas grossas, brumas, granizo e vento, todo o destempero de um inverno que estrebucha, por o forçarem a acordar de vez e a ir-se embora”.
“Entenda-se por Primavera, não uma quadra de serenidade florida, que irrompe de um dia para o outro em terras do continente, mas antes uma desvairada estação como a nossa, destas Ilhas, de sol radioso ou de céu cinzento, de mistura com chuvadas grossas, brumas, granizo e vento, todo o destempero de um inverno que estrebucha, por o forçarem a acordar de vez e a ir-se embora”.
E depois – mais evoca o escritor açoriano –, a revista Orpheu “trazia
na capa, em desenho de José Pacheco, uma mulher nua, de cabelos soltos, entre
dois grandes círios, altos e acesos. A má língua dos cafés, atenta sempre a
tudo o que se passa, logo a apelidou de ‘Enterro da Arte’! Afinal o enterro
redundou em apoteose estrondosa de indignação e protesto”... –, enfim, tal qual
lhe dissera um eufórico Pessoa, em carta de 4.4.1915:
– “Somos o assunto do dia em
Lisboa; sem exagero lhe digo. O escândalo é enorme. Somos apontados na rua, e
toda a gente – mesmo extraliterária – fala do Orpheu”...
E de tal modo o alvoroço fora,
como chocadamente escrevia “A Capital” ao remeter aquelas coisas e os seus
excêntricos autores para os pavilhões artísticos de Rilhafoles (quais produtos
e casos de “paranóia” de “indivíduos que a ciência definiu e classificou dentro
dos manicómios”), que “O Século Cómico” afiançava ficar a avaliação de tais
“maluquices” para outro ensejo, caso alguns dos redactores das críticas
literárias conseguissem “ler o folheto até ao fim sem percalço de maior” e
tanto mais quanto já então quatro deles, “ao tentarem a empresa, recolheram ao
hospital com terríveis indícios de alienação; [e] dois outros faleceram de
apoplexia fulminante às primeiras letras”!
3. Mas é claro que o Orpheu
representava e foi simbólica e mentalmente muito mais do que tudo isso.
– E nele, embora com um bastante diferenciado percurso literário, ético e espiritual (que deixaremos para outra ocasião abordar), lugar importante, por múltiplas razões, ocupa Côrtes-Rodrigues, – aliás, não há muito tempo, tão ridícula, desatenta ou ignorantemente naturalizado ou repatriado como “madeirense” por uma turma de “representantes” da nossa contemporânea nação (entre os quais um eleito pelos Açores!), na Assembleia da República, no dia 8.3.2008, como vale a pena rever para crer:
– E nele, embora com um bastante diferenciado percurso literário, ético e espiritual (que deixaremos para outra ocasião abordar), lugar importante, por múltiplas razões, ocupa Côrtes-Rodrigues, – aliás, não há muito tempo, tão ridícula, desatenta ou ignorantemente naturalizado ou repatriado como “madeirense” por uma turma de “representantes” da nossa contemporânea nação (entre os quais um eleito pelos Açores!), na Assembleia da República, no dia 8.3.2008, como vale a pena rever para crer:
De facto, num “Voto de Pesar”
pela morte de um grande historiador da Cultura Portuguesa (Joel Serrão), diz-se
que a sua primeira obra foi uma edição “das cartas de Pessoa ao poeta madeirense (sic) Armando Cortes
Rodrigues, colaborador da revista Orpheu”.
E a fantástica Proposta (*), depois aprovada por unanimidade, tinha sido previamente
subscrita e apresentada ao selecto Parlamento luso, então presidido por Jaime
Gama, pelos senhores deputados Guilherme Silva (PSD), Hugo Velosa (PSD),
Ricardo Rodrigues (PS), Jorge Strecht (PS), Sónia Sanfona (PS), Diogo Feio
(CDS-PP), Correia de Jesus (PSD) e Luís Fazenda (BE), assim sendo que, por
entre mediocridades de formação e outras leviandades na função, lá aqueles paúlicos deputados do reino e ilhas
adjacentes – “No seio negro e profundo/ Da noite, em treva dormindo”... – expatriaram o nosso bem lembrado Armando
Côrtes-Rodrigues e a sua querida Violante...
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Publicado em "Diário dos Açores",
(Ponta Delgada, 16.05.2015):
(Ponta Delgada, 16.05.2015):
Azores Digital:
e RTP-Açores:
Outra versão em "Diário Insular",
(Angra do Heroísmo, 16.05.2015):