O Declínio e a Emenda
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1. Como é sabido – e todavia nunca será despiciendo recordá-lo...
–, tanto a Constituição da República
quanto o decorrente e subordinado (porque sem poder de
autoconstituição) Estatuto Político-Administrativo
dos Açores (EPARAA) contém (art. 225.º
e Preâmbulo, respectivamente) uma
série de constatações empíricas e de considerandos histórico-políticos e
culturais que serviram de fundamentação
teórico-prática e jurídica para a consagração da Autonomia e das suas originantes e originárias razões.
– Não valendo a pena relembrar agora
as controvérsias (que temos bem presentes, até porque as antologiámos) – e que logo
na Constituinte, e depois ao longo do elucidativo historial das suas sucessivas
revisões, o EPARAA foi suscitando –, bastará certamente evocar, ao menos, as
ali aduzidas “características” insulares e as “aspirações autonómicas das
populações” açorianas (ou do mais controvertido e diferenciável “povo
açoriano”?), para sublinhar que a Autonomia visa “a participação democrática
dos cidadãos, o desenvolvimento económico-social e a promoção e defesa dos
interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de
solidariedade entre todos os portugueses”, numa inovadora modelação
institucional e orgânica do Estado.
Ora se estes são os motivos basilares da Autonomia, que
honram também a memória dos primeiros Autonomistas e a construção da identidade
e da unidade do nosso Povo, mais daí decorre, complementando-o e justificando-o, o elenco integral dos objectivos fundamentais da mesma, como
constam explicitados ao longo das alíneas do art. 3.º do EPARAA e que incluem imperativos de participação livre, desenvolvimento,
bem-estar e qualidade de vida, “baseados na coesão económica, social e
territorial” e na “garantia do desenvolvimento equilibrado de todas e cada uma
das ilhas”!
– Assim e por todas as razões de facto e de jure é que, olhando para as derivas da Região e para os
discursos e as propostas de alguns partidos, individualidades e corporações, o
que se constata é mesmo um perigoso
declínio dos motivos, pressupostos e objectivos desta Autonomia...
2. De resto, aquilo a que vamos assistindo é, outra vez,
exactamente equivalente ao que já por várias vezes nestas colunas referimos e
tornámos a referir como sendo uma outra – conquanto não inédita nem
surpreendente, nem sequer imprevisível... – onda de (in)disfarçados partidarismos autistas e carreiristas, a par de serôdios bairrismos e contra-bairrismos que apenas servem para camuflar, e são eles mesmos a própria e mais fácil,
fútil e traiçoeira camuflagem do
fracasso das sucessivas governações, abdicações parlamentares, alheamentos cívicos, alienações clientelistas de cidadania e
viciosas inoperâncias de todos os quadrantes da sociedade!
– Todavia, a par desses
escorregadios e viciosamente escamoteados
terrenos – que já de há muito excederam os inocentes remoques com os quais outrora, como ironizava Vitorino Nemésio,
“entretínhamos a nossa concorrência humaníssima nos penhascos”... –, não tem
faltado, nos diversos e antagónicos flancos desta envenenada contenda, tanto razões
fundamentadas quanto meras sensibilidades
epidérmicas em todos os lados dessas barricadas a nove, a
dois ou a três, conforme as ilhas ainda – debaixo,
de baixo ou distritalmente assim, tão regressiva
e saudosamente? – amiúde permanecem, numa espécie de manhoso usucapião que vai
ganhando foros, fortuna e alforria...
Mas os nossos males não derivarão
certamente e em primeiro lugar de uma questão de bairrismos mútuos; antes pelo contrário. O erro estará antes e muito
mais nos conteúdos de sucessivas governanças deficientes e na ausência de modelos
e actores credíveis e fiáveis, nesta sociedade já de si tão cronicamente
limitada, frágil e pobre!
Foto: António Araújo
3. E é por tudo isso – como também nunca será perda de tempo
lembrar ao termo... – que o que verdadeiramente interessa aos Açores e aos
Açorianos de todas as ilhas é perspectivar
e assegurar o futuro comum (que realmente não pode nem tem de ser em simétricas parelhas!), com profunda reflexão sobre os modelos de
Região que merecemos e de Desenvolvimento que precisamos, sem complexos de hegemonia ou de inferioridade, com racionalidade e
transparência, rigoroso planeamento, justiça, equidade, diálogo e
solidariedade, sem os quais, no circunscrito
alforge de recursos que temos, não haverá unidade de espírito açoriano nem
economia de matérias e meios que resistam à acefalia sistémica ou à cega e
preguiçosa irresponsabilidade
geracional que estão aniquilando esta (já impotente?) Autonomia
Constitucional, tão esperançosa e corajosamente conquistada:
– Tal como não será com ficções quixotescas, nem com
proliferações de “presidentes” (caciques ilhéus em novas juntas ou condomínios?),
que chegaremos a “encetar a procura do ajustamento da autonomia como sistema
político à viabilidade de um sistema económico”, como defendia o nosso bem
lembrado José Enes, – porém certamente
que não para malsã consumação de outra contradictio
in adjecto que mais condenaria a Autonomia a “morrer do vício cuja censura
e emenda está na origem do seu nascimento”!
E depois, até pelo que acabamos
de assistir no caso da Grécia – que sai
(ou reentra?) agora nos seus dramas e crises, que sobremaneira são também os da Europa como ideia
e como projecto –, valerá avisadamente
relembrar, tendo em conta as razões, os princípios, os motivos e os imperativos
da Autonomia que acima evoquei, aquilo que Álvaro Monjardino, embora num outro
cenário, em tempos trouxe à reflexão
açoriana:
– “Enquanto estes e outros
problemas não forem elaborados, discutidos, amadurecidos (...), não tenhamos
ilusões: a revisão constitucional será desgarrada e solta, menor em qualidade;
irregular em profundidade, fruto de compromissos ocasionais e superficiais, e
sem avanços que mereçam sequer esse nome. (...) No caso (...), mais uma vez o
deixamos dito: o que sentimos até agora teve muito de conjuntural, sem embargo
o movimento de ideias que vinha de trás. Mas continua a ter (e como o
sentimos!) pés de barro”...
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 14.07.2015):