segunda-feira, julho 13, 2015


O Declínio e a Emenda
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1. Como é sabido – e todavia nunca será despiciendo recordá-lo... –, tanto a Constituição da República quanto o decorrente e subordinado (porque sem poder de autoconstituição) Estatuto Político-Administrativo dos Açores (EPARAA) contém (art. 225.º e Preâmbulo, respectivamente) uma série de constatações empíricas e de considerandos histórico-políticos e culturais que serviram de fundamentação teórico-prática e jurídica para a consagração da Autonomia e das suas originantes e originárias razões.

– Não valendo a pena relembrar agora as controvérsias (que temos bem presentes, até porque as antologiámos) – e que logo na Constituinte, e depois ao longo do elucidativo historial das suas sucessivas revisões, o EPARAA foi suscitando –, bastará certamente evocar, ao menos, as ali aduzidas “características” insulares e as “aspirações autonómicas das populações” açorianas (ou do mais controvertido e diferenciável “povo açoriano”?), para sublinhar que a Autonomia visa “a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico-social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses”, numa inovadora modelação institucional e orgânica do Estado.



Ora se estes são os motivos basilares da Autonomia, que honram também a memória dos primeiros Autonomistas e a construção da identidade e da unidade do nosso Povo, mais daí decorre, complementando-o e justificando-o, o elenco integral dos objectivos fundamentais da mesma, como constam explicitados ao longo das alíneas do art. 3.º do EPARAA e que incluem imperativos de participação livre, desenvolvimento, bem-estar e qualidade de vida, “baseados na coesão económica, social e territorial” e na “garantia do desenvolvimento equilibrado de todas e cada uma das ilhas”!

– Assim e por todas as razões de facto e de jure é que, olhando para as derivas da Região e para os discursos e as propostas de alguns partidos, individualidades e corporações, o que se constata é mesmo um perigoso declínio dos motivos, pressupostos e objectivos desta Autonomia...

2. De resto, aquilo a que vamos assistindo é, outra vez, exactamente equivalente ao que já por várias vezes nestas colunas referimos e tornámos a referir como sendo uma outra – conquanto não inédita nem surpreendente, nem sequer imprevisível... – onda de (in)disfarçados partidarismos autistas e carreiristas, a par de serôdios bairrismos e contra-bairrismos que apenas servem para camuflar, e são eles mesmos a própria e mais fácil, fútil e traiçoeira camuflagem do fracasso das sucessivas governações, abdicações parlamentares, alheamentos cívicos, alienações clientelistas de cidadania e viciosas inoperâncias de todos os quadrantes da sociedade!



– Todavia, a par desses escorregadios e viciosamente escamoteados terrenos – que já de há muito excederam os inocentes remoques com os quais outrora, como ironizava Vitorino Nemésio, “entretínhamos a nossa concorrência humaníssima nos penhascos”... –, não tem faltado, nos diversos e antagónicos flancos desta envenenada contenda, tanto razões fundamentadas quanto meras sensibilidades epidérmicas em todos os lados dessas barricadas a nove, a dois ou a três, conforme as ilhas ainda – debaixo, de baixo ou distritalmente assim, tão regressiva e saudosamente? – amiúde permanecem, numa espécie de manhoso usucapião que vai ganhando foros, fortuna e alforria...

Mas os nossos males não derivarão certamente e em primeiro lugar de uma questão de bairrismos mútuos; antes pelo contrário. O erro estará antes e muito mais nos conteúdos de sucessivas governanças deficientes e na ausência de modelos e actores credíveis e fiáveis, nesta sociedade já de si tão cronicamente limitada, frágil e pobre!

                                                                                                 Foto: António Araújo

3. E é por tudo isso – como também nunca será perda de tempo lembrar ao termo... – que o que verdadeiramente interessa aos Açores e aos Açorianos de todas as ilhas é perspectivar e assegurar o futuro comum (que realmente não pode nem tem de ser em simétricas parelhas!), com profunda reflexão sobre os modelos de Região que merecemos e de Desenvolvimento que precisamos, sem complexos de hegemonia ou de inferioridade, com racionalidade e transparência, rigoroso planeamento, justiça, equidade, diálogo e solidariedade, sem os quais, no circunscrito alforge de recursos que temos, não haverá unidade de espírito açoriano nem economia de matérias e meios que resistam à acefalia sistémica ou à cega e preguiçosa irresponsabilidade geracional que estão aniquilando esta (já impotente?) Autonomia Constitucional, tão esperançosa e corajosamente conquistada:




– Tal como não será com ficções quixotescas, nem com proliferações de “presidentes” (caciques ilhéus em novas juntas ou condomínios?), que chegaremos a “encetar a procura do ajustamento da autonomia como sistema político à viabilidade de um sistema económico”, como defendia o nosso bem lembrado José Enes, – porém certamente que não para malsã consumação de outra contradictio in adjecto que mais condenaria a Autonomia a “morrer do vício cuja censura e emenda está na origem do seu nascimento”!

E depois, até pelo que acabamos de assistir no caso da Grécia – que sai (ou reentra?) agora nos seus dramas e crises, que sobremaneira são também os da Europa como ideia e como projecto –, valerá avisadamente relembrar, tendo em conta as razões, os princípios, os motivos e os imperativos da Autonomia que acima evoquei, aquilo que Álvaro Monjardino, embora num outro cenário, em tempos trouxe à reflexão açoriana:

– “Enquanto estes e outros problemas não forem elaborados, discutidos, amadurecidos (...), não tenhamos ilusões: a revisão constitucional será desgarrada e solta, menor em qualidade; irregular em profundidade, fruto de compromissos ocasionais e superficiais, e sem avanços que mereçam sequer esse nome. (...) No caso (...), mais uma vez o deixamos dito: o que sentimos até agora teve muito de conjuntural, sem embargo o movimento de ideias que vinha de trás. Mas continua a ter (e como o sentimos!) pés de barro”...
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 14.07.2015):