sábado, setembro 19, 2015


Os Remédios do Vigário
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1. O provérbio “Quem conta um conto acrescenta um conto” é conhecido e usado por múltiplos actores e falantes em diversos campos e instâncias, servindo em geral para significar ou querer dizer que toda e qualquer história, historieta ou narrativa – abonada palavra da Linguística... – ao ser reproduzida de mão e ouvido, ou de língua em língua, quando não ela mesma representação primeira ou procriação “langagière” (como diziam os semiólogos franceses) de ocorrências ou situações –, sempre lhes ajunta, enquanto relato, algum pormenor (talvez) não muito fiel, preciso ou exactamente traduzido, enquanto descrição narrada de eventos através desse inevitável meio.

– É claro que o destino ou condenação das falas (de toda a linguagem e narração afinal, e mais ainda delas quando – sempre? – interpretativas) acarreando carências (por excesso ou defeito) de adequação total a coisas, figuras e elementos do mundo, é uma marca insuperável e um risco inerente a toda a comunicação humana, – e mais o será ainda quando os artífice ou receptores de estórias forem destituídos de talento expressivo, domínio do linguajar, ou, pior, de veracidade ética, como por cá temos insularmente presenciado à exaustão nos despautérios de tantos contos e lendas que se vem debitando à conta da partidocracia cega e surda deste sistema falhado, pese embora muitos desses efabulatórios discursos e realidades não terem exclusividade autonómica, tal como, descontando proporções e plateias, ainda há pouco se comprovava nos gémeos pontos trazidos às ficcionadas rábulas de um afoito politiqueiro nacional, ainda hoje venerado “espólio” do PS e feroz artista jumelé de “comentador” (quando não de outras artes e ofícios, sortudas vigarias e desengaioladas manhas...).

Porém vem tudo isto agora mais a propósito é de uma daquelas medicinais prestações de quem toma conta e receita mezinhas e contos para as graves maleitas da Saúde nos Açores, – tão recordativas de outros proverbiais aviamentos, desde o presente vesgo ponto a outros paliativos e improvisados cuidados e contos antigos, que melhor dir-se-iam do vigário, conforme a seu tempo rolarão para diagnóstico, então com peso e medida, das tamanhas, entarameladas e anestésicas pontuações dos cata-ventos governamentais!


2. Por outro lado, mas tendo ainda em vista esta mesma e interessante recordação de pontos e contos... – todavia desta feita bem de vigário mesmo! –, como não lembrar aquela peça literária de Fernando Pessoa que o poeta da Mensagem publicou pela primeira vez, com o título de “Um Grande Português”, no número inaugural (30.10.1926) do jornal lisboeta “Sol” e que tornaria a imprimir três anos depois no “Notícias Ilustrado” (Lisboa, 2ª. Série, 18/08/1929) com o título «A Origem do Conto do Vigário»?


– A história, claro está, não tem qualquer relação directa com as fantásticas sessões do nosso parlamento ilhéu ou com os miméticos desmandos palavrosos com que, à falta de melhores bancadas para bate-papo, debates e passa-culpas (outro vocábulo muito em moda na gíria inter-acusatória dos partidos na capital...), os nossos actores políticos vão enchendo tempos de antena e cumprindo calendário pré-eleitoral. Porém, nem por isso o referido Conto de Pessoa deixa de ter atractivos, desde logo pelo texto em si, mas depois também por um outro escrito, inédito esse, que o mesmo autor teria tido intenção de dirigir ao director do citado O Notícias Ilustrado, aparentemente protestando (ou fingindo protestar...) contra o seu próprio texto sobre Manuel Peres Vigário...


E é assim que, se numa das redacções Fernando Pessoa conta a história de como aquele “pequeno lavrador e negociante de gado”, envolvido com “certo fabricante ilegal de notas falsas”, acabou por ludibriar a dois irmãos não menos gananciosos do que ele, e apesar disso (à custa de um expedito “recibo” trocado em dia de feira e à mesa de avinhado jantar “numa taberna escura”) acabou escapando à alçada da polícia e da Justiça, já no segundo texto-missiva, personificado (mascarando-se...) em vigarista ficcional, escreve o mesmo Pessoa o seguinte:

– “Pois quê? É lá possível que uma publicação (...) venha lançar aos quatro ventos da publicidade uma historieta sem pés nem cabeça, impingindo-a aos seus leitores como a origem do celebérrimo conto que tantos papalvos tem levado no embrulho e tanto vigarista tem guindado às mais altas e rútilas esferas da Fama? (...). Aquilo que em ‘O Notícias Ilustrado’ se vê e lê, é vigário... sem ‘conto’, vigário grotesco, sem fila, sem grupo, sem baratim (...). Não, sr. Director! Os vigaristas são homens de linha (...) e sabem trajar como dandys e apresentar-se como aristocratas... O ‘conto do vigário’ é bem diferente (...) e isso de notas falsas, pagamentos com notas de cem como se fossem de cinquenta, passamento de recibos e mais lérias pode ser tudo menos ‘conto do vigário’ e nenhuma relação tem com a sua pretendida origem. No ‘conto do vigário’ – tirante os pobres, porque esses não têm dinheiro para cair – tem caído gente de todas as classes sociais – médicos, lavradores, advogados, padres e juízes, representando garbosamente o clero, a nobreza e o povo... Até agentes da pasma têm levado com o paco pelos crachos – e está bem de ver que a história da corrente de latão fingindo oiro, sobre ser de mínima importância para produzir dinheiro de monta, é demasiadamente ingénua para levar à certa personagens de tão alto coturno mental...”.


3. Por todas estas razões, que são de patologia vária mas também de textos literários, e porque as levam morais de política, sociedade e história, merecem pois as mesmas ser relidos nestes novos velhos tempos de vigaria e vigarices esconsas mas conjugadas, como bem viu Bagão Félix ao comentar no seu Prefácio a um deles (edição do Centro Atlântico, Lisboa, 2011), nestes sugestivos e profilácticos termos:

– “Os contos viraram euros, mas o conto ainda o é. Na essência. E o senhor Vigário (...) metamorfoseou-se num ambiente de globalização e de exuberância tecnológica. É claro que continua a haver o vigário doméstico ou local, com uma métrica modestamente artesanal de enganar o parceiro. Mas a sofisticação da trapaça é agora universal, sem muros ou obstáculos. Há os vigários tóxicos, os vigários prolixos e os vigários que passam entre os pingos da chuva. Seguramente todos são nocivos. Há, também, os vigários políticos e eleitorais que prometem sem cumprir, para crédulos e votantes sempre disponíveis para cair no conto-do-vigário.

“ (...) Para ele, os fins justificam, sem pestanejar, qualquer meio”...
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 19.09.2015):