Os Remédios do Vigário
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1. O provérbio “Quem conta um
conto acrescenta um conto” é conhecido e usado por múltiplos actores e falantes
em diversos campos e instâncias, servindo em geral para significar ou querer
dizer que toda e qualquer história,
historieta ou narrativa – abonada
palavra da Linguística... – ao ser reproduzida
de mão e ouvido, ou de língua em língua, quando não ela mesma representação primeira ou procriação “langagière” (como diziam os semiólogos franceses) de
ocorrências ou situações –, sempre lhes ajunta,
enquanto relato, algum pormenor
(talvez) não muito fiel, preciso ou exactamente traduzido, enquanto descrição
narrada de eventos através desse inevitável meio.
– É claro que o destino ou condenação das falas (de toda a linguagem e narração afinal, e mais
ainda delas quando – sempre? – interpretativas)
acarreando carências (por excesso ou
defeito) de adequação total a coisas,
figuras e elementos do mundo, é uma marca insuperável e um risco inerente a toda a comunicação humana, – e mais o
será ainda quando os artífice ou receptores de estórias forem destituídos de talento expressivo,
domínio do linguajar, ou, pior, de
veracidade ética, como por cá temos insularmente presenciado à exaustão nos
despautérios de tantos contos e lendas que
se vem debitando à conta da
partidocracia cega e surda deste sistema
falhado, pese embora muitos desses efabulatórios discursos e realidades não terem exclusividade autonómica, tal
como, descontando proporções e plateias, ainda há pouco se comprovava nos gémeos
pontos trazidos às ficcionadas
rábulas de um afoito politiqueiro nacional, ainda hoje venerado “espólio” do PS
e feroz artista jumelé de
“comentador” (quando não de outras artes e ofícios, sortudas vigarias e
desengaioladas manhas...).
Porém vem tudo isto agora mais a
propósito é de uma daquelas medicinais
prestações de quem toma conta e receita mezinhas e contos para as graves maleitas da Saúde nos Açores, – tão
recordativas de outros proverbiais
aviamentos, desde o presente vesgo
ponto a outros paliativos e
improvisados cuidados e contos
antigos, que melhor dir-se-iam do vigário,
conforme a seu tempo rolarão para diagnóstico, então com peso e medida, das tamanhas, entarameladas e anestésicas pontuações dos cata-ventos governamentais!
2. Por outro lado, mas tendo ainda em vista esta mesma e
interessante recordação de pontos e
contos... – todavia desta feita bem de
vigário mesmo! –, como não lembrar aquela peça literária de Fernando Pessoa
que o poeta da Mensagem publicou pela
primeira vez, com o título de “Um Grande Português”, no número inaugural
(30.10.1926) do jornal lisboeta “Sol” e que tornaria a imprimir três anos
depois no “Notícias Ilustrado” (Lisboa, 2ª. Série, 18/08/1929) com o título «A
Origem do Conto do Vigário»?
– A história, claro está, não tem
qualquer relação directa com as fantásticas sessões do nosso parlamento ilhéu
ou com os miméticos desmandos palavrosos com que, à falta de melhores bancadas
para bate-papo, debates e passa-culpas
(outro vocábulo muito em moda na gíria inter-acusatória dos partidos na
capital...), os nossos actores políticos vão enchendo tempos de antena e
cumprindo calendário pré-eleitoral. Porém, nem por isso o referido Conto de
Pessoa deixa de ter atractivos, desde logo pelo texto em si, mas depois também
por um outro escrito, inédito esse, que o mesmo autor teria tido intenção de
dirigir ao director do citado O Notícias
Ilustrado, aparentemente protestando (ou fingindo protestar...) contra o seu próprio texto sobre Manuel Peres Vigário...
E é assim que, se numa das
redacções Fernando Pessoa conta a história de como aquele “pequeno lavrador e negociante de gado”, envolvido com
“certo fabricante ilegal de notas
falsas”, acabou por ludibriar a dois irmãos não menos gananciosos do que ele, e
apesar disso (à custa de um expedito “recibo” trocado em dia de feira e à mesa de avinhado jantar
“numa taberna escura”) acabou escapando à alçada da polícia e da Justiça, já no
segundo texto-missiva, personificado
(mascarando-se...) em vigarista ficcional, escreve o mesmo
Pessoa o seguinte:
– “Pois quê? É lá possível que
uma publicação (...) venha lançar aos quatro ventos da publicidade uma
historieta sem pés nem cabeça, impingindo-a aos seus leitores como a origem do
celebérrimo conto que tantos papalvos tem levado no embrulho e tanto vigarista
tem guindado às mais altas e rútilas esferas da Fama? (...). Aquilo que em ‘O
Notícias Ilustrado’ se vê e lê, é vigário... sem ‘conto’, vigário grotesco, sem
fila, sem grupo, sem baratim (...).
Não, sr. Director! Os vigaristas são homens de linha (...) e sabem trajar como dandys e apresentar-se como aristocratas...
O ‘conto do vigário’ é bem diferente (...) e isso de notas falsas, pagamentos
com notas de cem como se fossem de cinquenta, passamento de recibos e mais
lérias pode ser tudo menos ‘conto do vigário’ e nenhuma relação tem com a sua pretendida
origem. No ‘conto do vigário’ – tirante os pobres, porque esses não têm
dinheiro para cair – tem caído gente de todas as classes sociais – médicos, lavradores,
advogados, padres e juízes, representando garbosamente o clero, a nobreza e o
povo... Até agentes da pasma têm
levado com o paco pelos crachos – e está bem de ver que a
história da corrente de latão fingindo oiro, sobre ser de mínima importância
para produzir dinheiro de monta, é demasiadamente ingénua para levar à certa personagens de tão alto
coturno mental...”.
3. Por todas estas razões, que são de patologia vária mas também de
textos literários, e porque as levam morais
de política, sociedade e história, merecem pois as mesmas ser relidos
nestes novos velhos tempos de vigaria e
vigarices esconsas mas conjugadas, como bem viu Bagão Félix ao comentar no
seu Prefácio a um deles (edição do Centro Atlântico, Lisboa, 2011), nestes
sugestivos e profilácticos termos:
– “Os contos viraram euros, mas o
conto ainda o é. Na essência. E o senhor Vigário (...) metamorfoseou-se num
ambiente de globalização e de exuberância tecnológica. É claro que continua a
haver o vigário doméstico ou local, com uma métrica modestamente artesanal de
enganar o parceiro. Mas a sofisticação da trapaça é agora universal, sem muros
ou obstáculos. Há os vigários tóxicos, os vigários prolixos e os vigários que
passam entre os pingos da chuva. Seguramente todos são nocivos. Há, também, os
vigários políticos e eleitorais que prometem sem cumprir, para crédulos e
votantes sempre disponíveis para cair no conto-do-vigário.
“ (...) Para ele, os fins
justificam, sem pestanejar, qualquer meio”...
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 19.09.2015):