domingo, março 17, 2019


ENTREVISTA
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Os Açores de Portugal:
Ditames internacionais e evasivas nacionais
cruzam-se sobre as Lajes

O Ministro dos Negócios Estrangeiros português referiu-se há dias, em termos controversos, a várias situações envolvendo a Base das Lajes. Como analisa essas afirmações?

EDUARDO FERRAZ DA ROSA (EFR) – Não é a primeira vez que Augusto Santos Silva – enquanto Ministro dos Negócios Estrangeiros (e recordo que foi igualmente Ministro da Defesa...) – teve ocasião de se pronunciar sobre as Lajes, “dossier” que lhe deverá ou deveria ser bem familiar por várias e compreensíveis razões, umas de ordem estritamente governativa e político-partidária (quando não solidariamente patriótica), outras de superior calibre intelectual, epistemológico, ético e social.

Porém, ainda pela proximidade indeclinável de mais exigentes razões, argumentos e discursos de fundo, outrossim subentendidos ou pressupostos, deve salientar-se que Santos Silva é um bom sociólogo, com obra apreciável, especialmente pelos seus contributos metodológico-científicos, cujas categorias críticas seriam aliás bem úteis para aplicação à desmontagem dos seus desempenhos mediáticos e retóricos como governante de Lisboa, tais aqueles que acaba de tornar a consumar...


– Quanto às suas afirmações na última audição da Comissão de Negócios Estrangeiros da AR, onde foi abordado o teor dos assuntos debatidos, a 18 de Dezembro passado, na então 40.ª reunião da Comissão Bilateral Permanente, nada de muito novo ou surpreendente há a registar, excepção feita talvez à vivacidade, um pouco arriscada e imperativa, determinante (ou dogmática?) com que assegurou (garantiu ou subscreveu?) a suposta (ou comprovada, mesmo sem o precaucionais falsificacionismo da exclusão popperiana!?) não existência de significativa relação etiológica, patogénica e epidemiológica entre a poluição/contaminação gerada (potenciada?) pela profunda implantação estrutural e pela prolongada e vasta fixação do tão inter-nacionalmente consentido rasto do antigo e desprezado complexo logístico-militar, material, orgânico, físico-químico e radiológico norte-americano na Terceira, com as respectivas influências e suspeitosas repercussões eco-ambientais na saúde pública (sobretudo no pluri-factorial e pluridimensional campo das doenças oncológicas...).

A questão da contaminação/descontaminação dos solos terceirenses tem marcado recentemente as agendas políticas locais, nacionais e internacionais. Neste domínio, como caracteriza o presente estado de coisas?

EFR – Desde logo, vale a pena salientar que aquelas afirmações de Santos Silva, em tom variável mas praticamente quase com dobrado conteúdo, haviam já sido proferidas anteriormente, tirando os lapsos sobre a inserção de verbas específicas no Orçamento americano, mas reincidindo sobre o horizonte e o andamento, alegadamente consensual e concertado, entre os governos de Lisboa e de Washington, no respeitante a mecanismos e acções saneadoras da comprovada e assente (des)contaminação ambiental!

De igual modo constata-se ali o recurso evocativo, contudo para impeditiva reserva ou omissão, porque em segredo diplomático, do enquadramento de complementares informações sobre o corrente processo da descontaminação e suas suplementares (compensatórias?) contrapartidas nacionais e regionais.


– Todavia há a registar agora uma mais detalhada referência, nos Pontos 14 a 21 da Declaração Conjunta, às contendas localizadas como alvo de estudos (do Governo Regional/LNEC) e intervenções conjuntas na limpeza radical ou (simples?) encerramento de diversos sítios poluídos ou contaminados, na expectativa de outras pendentes e “possible closures of sites”, e bem assim do curso do derrame no oleoduto do Cabrito, a ser submetido ao 65th ABG através do “previsto no Acordo sobre o Estatuto das Forças da NATO (SOFA)”. 

De seguida, a dita Declaração (44 Pontos em Acta), deixa genericamente perceptível um crescente interesse das partes, com detectável inclinação portuguesa, para ancestrais e novas áreas da Defesa e Segurança Nacional, Ciência e Tecnologia Aeroespacial, Cibersegurança, Combate a Fogos Florestais, Clima e Oceanos, Comércio, Investimentos, Energia e Combustíveis (GNL).


Ao longo de anos, em muitas intervenções públicas e em ensaios académicos, tem-se pronunciado criticamente e estudado várias das vertentes da presença norte-americana na Terceira, na Base das Lajes e no concelho da Praia da Vitória. Face ao que analisou, como encara hoje essa problemática?

EFR – Como é sabido, o que tenho procurado reflectir foi efectivamente mais conduzido a partir de uma perspectiva crítica, filosófico-política, teorética e antropológico-cultural, prendendo-se também com a chamada recepção da presença norte-americana entre nós, no que aí está presente de uma vasta problemática envolvendo representações sociais, modelos simbólicos e discursos identitários, para além naturalmente de uma atenção ao papel das elites e actores locais, no arquipélago e fora dele, face, perante e após a chegada dos contingentes militares estrangeiros e seus densos impactos no exercício do Poder nacional/regional/local, na soberania, na economia produtiva, no comércio e nos serviços, na estrutura patrimonial, laboral e fundiária (mormente na zona do Ramo Grande), enfim, nos usos, costumes, linguagens, etc.


– Assim, conferências como Estrangeiros “At Home”: Leituras de uma Recepção Histórica, apresentada no Colóquio Internacional sobre Terrorismo e Ordem Mundial (2002) ou Identidade, Diplomacia e História: Recepção, Representações e Heranças da Presença Aliada nos Açores, no Colóquio Internacional sobre Portugal e o Atlântico (Fundação Humberto Delgado/Assembleia da República, 2003) inseriram-se nessas leituras.

Finalmente, tenho procurado atender ao confronto e rupturas mundividenciais que se verificaram neste frágil e dependente microcosmos insular, com os seus cíclicos desafios e custos, mas não à margem das grandes crises portuguesas, europeias e do Ocidente no seu todo (v.g. fragmentação dos Impérios Coloniais e do próprio projecto imperial lusíada, reconfiguração dos Blocos, hegemonias e polaridades, sobretudo desde o Estado Novo ao 25 de Abril de 74 e até hoje), sendo que o que se passa neste nosso tempo e à nossa volta é ainda reflexo e mutação acelerada de tudo isso, para o bem e para o mal...

– O outro projecto, sobre o qual conversámos e cuja fase de investigação empírica foi originalmente realizado para Doutoramento em Antropologia Médica e Psicossociologia da Saúde na Universidade do Porto (ICBAS), sobre o campo oncológico (uso o conceito de campo tal como Bourdieu o tratou), de facto nunca se debruçou especificamente sobre eventuais conexões geo-etiológicas à Base das Lajes.

É sabido que tem proposto diferentes abordagens a todas estas situações. Como e em que medida lhe parece poderem as mesmas ser concretizadas?

EFR – Esta é uma complexa, conquanto muito apelativa, área multidisciplinar que vejo, com satisfação, ir merecendo renovados e inovadores contributos e horizontes de abordagem, para além de preciosos contributos, levantamentos e divulgação de fontes e pistas documentais, como é o caso da recente e notável Tese de Doutoramento de Armando Mendes.

Porém, infelizmente, o que não vejo, da parte das instâncias políticas e individuais rotinadas, é significativos empenhos sólidos, procura e aquisição de competências intelectuais, técnicas e decisórias, com afirmação de rigor institucional e formação de opinião pública esclarecida, credenciada, atendível, e só desse modo, ambas, respeitáveis e respeitadas! Tentativas censórias ou coercivas a nada ajudam! E receio mesmo que tenhamos perdido já grandes oportunidades geracionais e conjunturais, que a Autonomia poderia ter gerado e que estavam vivas na nossa esperança, quiçá utópica, de ver consolidadas nos nossos fatídicos dias...


– Mas veja-se lá, voltando à questão principal desta Entrevista, que nunca fomos capazes de organizar uma verdadeiramente grande Conferência Internacional sobre a Base das Lajes e seus impactos! Mesmo no caso do downsizing, das contaminações eco-ambientais e seus diversos antecedentes, consequências e processos alternativos de enfrentamento, resistência e tentativa de superação, bastaria olhar para a Ásia e oPacífico, para a América Latina e para a Europa (Alemanha, Espanha e Itália), para vislumbrar o que temos ignorado...

Não se trata só de uma questão envolvendo bases militares fora dos EUA (país aliado, nação amiga e sociedade livre e aberta), porquanto similares problemas tem-se colocado analogamente em comunidades locais e estaduais no próprio território interno dos USA... De resto, no coração da Europa, na Polónia, por exemplo, a questão da penosa herança neste domínio é com a Rússia (antiga URSS), onde casos como o de Borne Sulinowo, talvez sejam muitíssimo mais dramáticos do que o nosso, apesar dos OCS russos, que pressurosamente visaram Portugal, os Açores e os Estados Unidos, deles se terem inocentemente esquecido ou deliberadamente omitido as levianas mãos...

– E nisto Santos Silva terá razão, enfim, ao menos sociologicamente falando, pois como ele escreveu em “Agir na Globalização”, e cito-o parafraseando, aqui a análise sociológica  ao menos ajudaria a identificar problemas e a definir um quadro para discussão científica, longe dos sensos ou sentidos meramente comuns ou vulgares (também eles urdindo preconceitos, inócuas ideologias e falsas propagandas), porquanto, se respostas políticas “são certa e felizmente variáveis”, haveríamos, ao menos aí, de tentar entendermo-nos sobre “eixos temáticos” fundamentais, em torno dos quais poderíamos ainda reconstruir uma meta-narrativa crítica e séria, cívica, justa e democraticamente legitimada!
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(*) Entrevista concedida ao jornal "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 16.03.2019):