Os Açores de Portugal:
Ditames internacionais e evasivas nacionais
cruzam-se novamente sobre as Lajes
ENTREVISTA (*)
________________________
O Ministro dos Negócios Estrangeiros português referiu-se há dias, em
termos controversos, a várias situações envolvendo a Base das Lajes. Como
analisa essas afirmações?
EDUARDO FERRAZ DA ROSA (EFR) – Não é a primeira vez que Augusto
Santos Silva – enquanto Ministro dos Negócios Estrangeiros (e recordo que foi
igualmente Ministro da Defesa do famigerado José Sócrates...) – teve ocasião de
se pronunciar sobre as Lajes, “dossier” que lhe deverá ou deveria ser bem
familiar por várias e compreensíveis razões; umas de ordem estritamente
governativa e político-partidária (quando não solidariamente patriótica), outras de superior calibre intelectual,
epistemológico, ético e social.
Porém, ainda pela proximidade
indeclinável de mais exigentes razões, argumentos e discursos de fundo,
outrossim subentendidos ou pressupostos, devo salientar que Santos Silva é um bom
sociólogo de carreira universitária, cujo obra conheço bem e que de resto
aprecio, especialmente pelos seus contributos metodológico-científicos e cujas
categorias críticas seriam aliás muito úteis para aplicação à desmontagem dos seus desempenhos mediáticos e retóricas
governativas como governante de Lisboa, tais aqueles que acaba de tornar a consumar...
Falsificacionismo, Precauções e Riscos
– Quanto às suas afirmações na última audição da Comissão de Negócios Estrangeiros da AR, onde foi abordado o teor dos assuntos debatidos, a 18 de Dezembro passado, na então 40.ª reunião da Comissão Bilateral Permanente, nada de muito novo ou surpreendente há a registar, excepção feita talvez à vivacidade, um pouco arriscada e imperativa, determinante (ou dogmática?) com que assegurou (garantiu ou subscreveu?) a suposta não existência (comprovada, mesmo sem o precaucional falsificacionismo da exclusão popperiana!?) de significativa relação etiológica, patogénica e epidemiológica entre a poluição/contaminação geradas (potenciadas?) pela profunda implantação estrutural e pela prolongada e vasta fixação, temporal e historicamente situáveis, do tão inter-nacionalmente e regionalmente consentido rasto do camuflado, semi-encoberto e desprezado complexo logístico-militar, materialmente bélico e letal, orgânico, físico-químico e radiológico norte-americano na Terceira durante meio século, com os paradigmáticos riscos, respectivas influências e suspeitosas repercussões eco-ambientais na Saúde Pública (sobretudo no pluri-factorial e pluridimensional campo das doenças oncológicas...).
A questão da contaminação/descontaminação dos solos terceirenses tem
marcado recentemente as agendas políticas locais, nacionais e internacionais.
Neste domínio, como caracteriza o presente estado de coisas?
EFR – Desde logo, vale a pena salientar que aquelas afirmações de
Santos Silva, em tom variável mas
praticamente quase com dobrado conteúdo,
haviam já sido proferidas anteriormente, tirando os lapsos sobre a inserção de verbas específicas no Orçamento
americano, mas reincidindo sobre o horizonte
e o andamento, alegadamente consensual e concertado, entre os governos de
Lisboa e de Washington, no respeitante a mecanismos e acções saneadoras da comprovada e assente (des)contaminação
ambiental!
Estudos, Segredos e Diplomacias
– De igual modo constata-se ali o
recurso evocativo, contudo para impeditiva reserva ou omissão, porque em
segredo diplomático, do enquadramento
de complementares informações sobre o
corrente processo da descontaminação e suas suplementares
(compensatórias?) contrapartidas
nacionais e regionais.
Todavia há a registar agora uma
mais detalhada referência, nos Pontos 14 a 21 da Declaração Conjunta desta 40.ª
Reunião da referida Comissão, às contendas localizadas como alvo de estudos (do Governo
Regional/LNEC) identificações e intervenções conjuntas na limpeza ou encerramento (simples?) de diversos
locais poluídos ou contaminados (caso dos Locais 2008, 2009, 3005, 3006, 3009 e
3012), na expectativa de outros possíveis ou pendentes (“possible closure of
sites”), nos Locais 3001, 5013,5011 e 5012, e bem assim do curso do derrame de
combustível no pit 18 do oleoduto do
Cabrito, “a ser submetido ao 65th ABG [Air Base Group] através do mecanismo de
reclamações previsto no Acordo sobre o Estatuto das Forças da NATO (SOFA)
[Status of Forces Agreement]”.
De seguida, a dita Declaração (44
Pontos em Acta), numa evidente progressão narrativa e precisiva relativamente à
sua 49.ª edição, para além das questões ambientais terceirenses, deixa ainda genericamente perceptível ou insinuado um crescente interesse das
partes, com detectável inclinação portuguesa, como se esperava, para ancestrais
e novas áreas da Defesa e Segurança Nacional, Ciência e Tecnologia
Aeroespacial, Cibersegurança, Combate a Fogos Florestais, Clima e Oceanos,
Comércio e Investimentos e Energia (GNL-Gás Natural Liquefeito).
– Resta dizer que foi mais
precisamente sobre os conteúdos dos citados Pontos que incidiram as inquirições
dos Deputados açorianos (terceirenses) Lara Martinho (PS) e António Ventura
(PSD), ambos reclamando uma maior transparência
na informação concreta e específica sobre os respectivos objectos, enquanto
os parlamentares do BE e do CDS/PP fizeram perquiriram sobre o cumprimento da
Legislação laboral e sobre quais os declarados “futuros usos adicionais para as
Lajes”.
Ao longo de anos, em muitas intervenções públicas e em ensaios
académicos, tem-se pronunciado criticamente e estudado várias das vertentes da
presença norte-americana na Terceira, na Base das Lajes e no concelho da Praia
da Vitória. Face ao que analisou, como encara hoje essa problemática?
EFR – Como é sabido, o que
tenho procurado reflectir foi efectivamente mais conduzido a partir de uma
perspectiva crítica, filosófico-política, teorética e antropológico-cultural,
prendendo-se também com a chamada recepção
da presença norte-americana entre nós, no que aí está presente de uma vasta
problemática envolvendo representações sociais,
modelos simbólicos e discursos identitários, para além naturalmente de uma
atenção ao papel das elites e actores
histórico-institucionais, socioculturais e políticos locais, no Arquipélago
e fora dele, face, durante e após a chegada dos contingentes militares
estrangeiros, com os seus densos impactos no exercício do Poder
nacional/regional/local, na soberania, na economia produtiva tradicional, no
comércio, no consumo de produtos e nos serviços, na estrutura patrimonial,
laboral e fundiária (mormente na zona do Ramo Grande), nos hábitos e produtos
de alimentação e vestuário, enfim, nos valores inculturados, usos, costumes,
linguagens, imaginários e memórias comunitárias localmente vivenciadas, etc.
– Assim, entre outros, os textos de conferências como Estrangeiros “At Home”: Leituras de uma
Recepção Histórica, apresentada no Colóquio Internacional sobre Terrorismo
e Ordem Mundial (2002) ou Identidade,
Diplomacia e História: Recepção, Representações e Heranças da Presença Aliada
nos Açores, no Colóquio Internacional sobre Portugal e o Atlântico (Fundação
Humberto Delgado/Assembleia da República, 2003) inseriram-se nessas leituras.
Elites, Actores e Desafios
Finalmente, tenho procurado
atender ao confronto e rupturas mundividenciais
que se verificaram neste frágil e dependente microcosmos insular, com os seus custos e cíclicos desafios (para retomarmos o título de uma pequena
mas muito marcante e ainda actual obra, que tive o gosto de prefaciar em 1990, O Desafio Insular – do tão respeitável
político português, governante açoriano e meu estimado amigo Mota Amaral), mas não à margem das grandes crises
portuguesas, europeias e do Ocidente no seu todo (v.g. fragmentação dos
Impérios Coloniais e do próprio projecto imperial lusíada, reconfiguração dos
Blocos, hegemonias e polaridades, sobretudo desde o Estado Novo ao 25 de Abril
de 74 e até hoje), sendo que o que se passa neste nosso tempo e à nossa volta é
ainda reflexo e mutação acelerada de
tudo isso, para o bem e para o mal...
– Um outro projecto, sobre o qual
conversámos e cuja fase de investigação empírica, articulada com o
acompanhamento dos trabalhos clínicos e científicos de Jácome Armas no HSEIT e
no SEEBMO, e que foi originalmente perspectivado academicamente para
Doutoramento em Antropologia Médica e Psicossociologia da Saúde na Universidade
do Porto (ICBAS), sobre o campo
oncológico (uso aqui o conceito de campo
tal como Bourdieu o tratou), devo acentuar a propósito, de facto nunca se
debruçou especificamente sobre eventuais conexões geo-etiológicas à Base das
Lajes.
É sabido que tem proposto diferentes abordagens a todas estas
situações. Como e em que medida lhe parece poderem as mesmas ser concretizadas?
EFR – Esta é uma complexa,
conquanto muito apelativa, área
multidisciplinar que vejo, com satisfação, ir merecendo lentamente, na
sequência dos pioneiros trabalhos da Universidade dos Açores (v.g. CERIE) e
respectivos parceiros, renovados e inovadores contributos e horizontes de
abordagem académica, científica, ensaística e literária, alguns acolhidos pelos
nossos Institutos açorianos e apoiados por Autarquias e mecenas ocasionais, para
além de outros preciosos contributos, levantamentos e divulgação de fontes e
pistas documentais, de relevo nacional (e assim se espera que sejam mesmo
merecidamente lidos e potenciados!), como
é o caso da recente e notável Tese de Doutoramento, orientada por António José
Telo, de Armando Mendes.
Irrelevâncias e Censuras
– Porém, infelizmente, o que não
vejo, da parte da quase totalidade das instâncias políticas e aí
individualmente também rotinadas, para além de uns pontuais balbucios
irrelevantes, parlamentares ou mais ou menos mediocremente comissariados, é significativos
empenhos sólidos, procura e aquisição de competências intelectuais, técnicas e
decisórias, com afirmação de rigor institucional e confluente formação e
mobilização de uma opinião pública esclarecida, credenciada, atendível, e só
desse modo, ambas, respeitáveis e respeitadas... E receio mesmo que tenhamos
perdido já grandes oportunidades geracionais e conjunturais, que a Autonomia
poderia ter gerado e que estavam vivas na nossa esperança, quiçá utópica, de
ver consolidadas nos nossos fatídicos dias... E depois, tentativas censórias ou
coercivas, arriscadas e imponderadas, não só políticas quanto técnicas e mesmo
de investigação científica, até ética e epistemologicamente retrógradas, a nada
ajudam!
Contudo devo dizer o mesmo de
certas arremetidas eivadas de um tentador anti-americanismo destemperado, de
abusivas exigências de intromissão regional ou autárquica em áreas reservadas a
representações nacionais soberanas, quando não a esboços de arregimentação
popular municipal, com fixação de cartazes, palavras de ordem e megafones às
portas e ouvidos da Base das Lajes (Base Aérea 4) e dos centros de decisão e
tutela da Defesa e das Forças Armadas Portuguesas, como num famoso e
contraproducente “relambório” praiense de 2003 (ver “Diário dos Açores” de
30.01.2003), que igualmente não propiciaram a abertura de canais de comunicação
serenos, construtivos e adequados, diplomaticamente exequíveis e até
constitucional e estatutariamente garantidos...
Impreparação e Desconhecimentos
É claro que tudo isto é tanto
mais penoso e confrangedor quando se constata, desde há dezenas de anos, que as
delegações negociais de Portugal (com ou sem o devido e atempado acompanhamento
dos nossos amiúde e escusadamente chamados “seus” Açores...) nem sempre se
apresentam no mais acreditado e reconhecido estatuto de preparação
jurídico-política, diplomática, económica, cultural e argumentativa, como os
próprios participantes nas mesmas têm sobejamente testemunhado para memória
futura!
– Mas veja-se lá, voltando à
questão principal desta Entrevista, que nunca fomos sequer capazes de organizar,
para reflectir e melhor agir, uma
verdadeiramente grande Conferência Internacional sobre a Base das Lajes e seus
impactos! Mesmo no caso do downsizing,
das contaminações eco-ambientais e seus diversos antecedentes, consequências e
processos alternativos de enfrentamento, resistência e tentativa de superação,
bastaria olhar para a Ásia e para o Pacífico, para a América Latina e para a
Europa (Alemanha, Espanha e Itália), para vislumbrar o que temos ignorado...
E
não se trata só de uma questão envolvendo bases militares fora dos EUA – país
aliado, nação amiga, sociedade livre e aberta à qual nos ligam muitos laços modelares de diáspora destinal e
solidários antecedentes de acolhimento e até de miméticas sugestões de alternativa
societária (quando não de protectorado...),
a par de algumas ingratidões, desvinculações e sobrancerias ultrajantes... –, porquanto
similares problemas tem-se colocado analogamente em muitas comunidades locais e
estaduais no próprio território interno dos USA, como noutra ocasião poderei
desenvolver.
Penosas e Dramáticas Heranças, Levianas Mãos e Horizontes Globais
De resto, no coração da Europa, na Polónia, por exemplo, a questão da penosa herança neste domínio é com a Rússia (antiga URSS), onde casos como o de Borne Sulinowo, talvez sejam muitíssimo mais dramáticos, apesar dos OCS russos, que pressurosamente visaram Portugal, os Açores e os Estados Unidos, deles se terem inocentemente esquecido ou deliberadamente deles tenham omitido as levianas mãos...
– E nisto Santos Silva terá razão, ao menos sociologicamente (mas com mais teoria crítica e melhor filosofia social e política!) falando, pois, parafraseando o que ele escreveu em “Agir na Globalização”, a análise sociológica ao menos ajudaria a identificar problemas e a definir um quadro para discussão científica, longe dos sensos ou sentidos meramente comuns ou vulgares (também eles urdindo preconceitos, inócuas ideologias e falsas propagandas), porquanto, se respostas políticas “são certa e felizmente variáveis”, haveríamos, ao menos aí, de tentar entendermo-nos sobre “eixos temáticos” fundamentais, em torno dos quais poderíamos ainda reconstruir uma meta-narrativa séria, cívica, justa e democraticamente legitimada!
________________________
(*) Entrevista originalmente em parte
concedida ao jornal “Diário Insular” (Angra do Heroísmo, 09.03.2019). Texto revisto e muito aumentado, para as edições seguintes.
___________________
Publicado em jornal "Atlântico Expresso" (Ponta Delgada, 25.03.2019):
"Azores Digital" (24.03.2019):
___________________
Publicado em jornal "Atlântico Expresso" (Ponta Delgada, 25.03.2019):
"Azores Digital" (24.03.2019):
e Jornal "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 24.03.2019):