domingo, novembro 27, 2011



Os Plátanos e o Outono do Patriarca

A polémica à volta dos destinos a dar a uma conhecida e formosa alameda de plátanos junto à vila da Povoação, na ilha de S. Miguel, é exemplar a todos os títulos e bem pode servir como parábola ou paradigma de muitas outras ocorrências técnico-institucionais (e de outras tantas implantações…) que se verificam aos mais diversos níveis e diferentes campos, jardins, estradas e atalhos regionais, conforme a servidão ou o préstimo dos acessos…


Assim, tal modelo de desacertos, carências de coordenação dialogada e disparidade de interesses – e de graves faltas de bom senso e visão patrimonial, cultura de desenvolvimento e civilidade ecológica –, logo levou a situações caricatas (como se antes não tivessem já sido de tragicomédia emproada, mediaticamente denunciada…), bem reveladoras do lastimável estado de espírito, piso ou berma dos caminhos que vamos penosamente trilhando, à deriva e na ausência de rumos e bosquejos coerentes e credíveis!

Por outro lado e como é sabido, nestas questões relativas à Ecologia, aos Patrimónios Naturais, à Política para o Meio Ambiente, à Protecção dos Habitats, à Defesa das Espécies, à Protecção dos Animais, ao Turismo Ecológico, Paisagístico e Histórico-Cultural, etc. – realidades e potencialidades afinal todas interligadas –, sempre aparecem em presença, e recorrentemente em confronto, múltiplas posições e sensibilidades, às quais não são alheias outros tantos interesses e filosofias da Vida.




Porém, diga-se que o que se está abordando e propondo hoje como horizonte para reflexão não é só, nem sequer principalmente, uma estrita abordagem de políticas de ambiente, antes uma verdadeira e mais ampla ecopolítica (não confundível com a acepção “essencialmente organizativa e institucional” que àquela se encontra associada), porquanto, como muito bem já assinalou Viriato Soromenho Marques, poderemos afirmar que à concepção de ecopolítica se “deve vincular o projecto de uma crítica da política dominante, (…) de um outro modo de ver a política, de uma crítica essencial da teoria e da praxis política, baseada numa tomada de posição ao nível dos princípios”!

Ora tudo isto, que o caso da alameda dos plátanos micaelenses tipifica, só não teve, desta vez, um imediatamente infeliz, desordenado e irremediável desfecho técnico-ambiental e político devido à pronta e precaucional intervenção do presidente do Governo, o único verdadeiramente primeiro e último decisor de toda uma série de medidas tomadas na governação socialista açoriana (e também nas outras deixadas sem implementação!) por uma grandemente medíocre e incompetente galeria de humanos arbúsculos e demais plantas de mera decoração de gabinete (porém, e mesmo aí, sempre em sustentada estimação executiva e parlamentar…).



– Mas tudo isto ainda e finalmente, é tanto mais imperdoável, à medida que o tempo passa e se esgota, quanto, por entre tantas outras alternativas possíveis e outras melhores e mais emblemáticas hortênsias autonómicas, foram crescendo e continuarão parasitando até ao fim nesta insular árvore de patacas e de contemporâneos Malucos, como ervas daninhas ou viçosos esgalhados dos piores cepos partidários (ou das suas híbridas enxertias de conjuntura oportunista e lucrativa…), muitos daqueles troncos a que já nem a camuflagem das folhas tutelares e douradas, mas em declínio protector, do “grande senhor” dos plátanos – como no Outono do Patriarca de Gabriel García Marquez…) – consegue esconder os ramos gastos, reduzidos à sua real e improdutiva natureza, e na sua provavelmente penúltima floração.
___________________
ttp://www.auniao.com/noticias/ver.php?id=26119
e "Diário dos Açores (27.11.2011)

sábado, novembro 19, 2011

As Colunas do Poder


 
     Com grande notoriedade mediática – especialmente em importantes órgãos da Comunicação Social escrita nacional (jornais e revistas) – mereceram, nos últimos dias, a Maçonaria portuguesa e a Política lusa, conjugadamente, uma significativa, ampla e desusada abordagem, à qual não faltaram muitos dos atraentes motivos e ingredientes que sempre estiveram, e ainda estão, associados àquela aureolada instituição e àquele decisivo (e decisório…) domínio da vida do País.
    
Ora não deixa – talvez, mas apenas à primeira vista… – de causar alguma estranheza o facto de ser precisamente nesta época de crises generalizadas (em Portugal, na Europa e nos Estados Unidos…) que entre nós esse tema tenha sido trazido, da forma como o foi, ao espaço, à divulgação e ao conhecimento da generalidade da opinião pública, curiosa e até potencialmente cativante, tanto mais quanto isso mesmo foi efectivado com a precisa, minuciosa e planeada revelação doseada – mais ou menos atractiva, sugestiva e sedutora… – de alguns documentados e ilustrados pormenores (afinal, nem sequer tão secretos ou reservados como se poderá ter querido fazer parecer) da história, génese, características, ritualidades, simbologias e práticas daquela instituição e dita “sociedade secreta”, que assim e por este meio viu provavelmente mais polidas e potencialmente levantadas algumas das suas novas e pretendidas colunas
    
Porém, e para além daqueles sucintos dados, o que mais acentuadamente terá motivado muita da referida e conseguida oferta de tão rentável produto informativo – e das respectivas e diligentes investigações jornalísticas que lhe deram matéria para edição –, foi certamente o rol de nomes dos “irmãos” ali elencados como pertencentes à agora relembrada Maçonaria (nas suas diversas obediências, tendências, Lojas e preponderantes filiações ideológicas ou político-partidárias, com destaque aqui, como é sabido, mas não só, para ilustres dirigentes históricos do PS e do PSD.

     – De resto, e quanto ao PSD, o referido destaque não deixa de vir mesmo a propósito e muito convenientemente por causa da distinta personalidade do seu quase plenipotenciário e iluminado ministro Relvas, figurinha aliás cada vez mais hegemónica no compasso governativo de Passos, e cuja emproada barriguinha de poderes, mesmo sem avental visível que lhe cubra as entranhadas circunvoluções e marteladas na Autonomia, lá vai conseguindo apertar os seus cordões nodosos aonde muito bem ou mal, e conforme quer, pode e manda!

     Não há dúvida que este tema da Maçonaria é mesmo apaixonante, revestindo-se de inusitados alcances directos e indirectos, de todos os pontos de vistas, mas sem dúvida ainda mais para o estudo da História e das Mentalidades.

     – E assim merece hoje e aqui referência, também pelos dados que no respeitante aos Açores contém, o recente livro do historiador António Ventura, aonde é sucintamente analisado o papel da Maçonaria e dos Maçons na Primeira República e na Assembleia Constituinte de 1911, entre os quais figuravam alguns açorianos e eleitos pelos Açores (António Joaquim Sousa Júnior, Augusto de Almeida Monjardino, Eduardo Augusto da Rocha de Abreu, Faustino da Fonseca, Francisco Luís Tavares e Manuel Goulart de Medeiros), e bem assim alguns outros cuja vida familiar e profissional de algum modo se ligou ao Arquipélago e à Maçonaria nas ilhas. A obra tem pois um especial interesse histórico-biográfico, complementando deste modo outros estudos conhecidos e de maior fôlego sobre o mesmo conturbado período da história de Portugal.

     Quanto aos primeiramente referidos artigos jornalísticos e de revista, ainda vistos à luz dos dados que a citada obra Os Constituintes de 1911 e a Maçonaria (Lisboa, Círculo de Leitores, 2011) inclui, não poderá deixar de constatar-se que na Maçonaria, como em todas as instituições, há gente de bem, de mérito e de genuína valia humana, científica e política (a quem Portugal e os Açores muito deveram e devem), a par de outros – como hoje é mais do que evidente continuar a poder ser constatado! –, cuja errática e oportunista carreira, mediocridade intolerante e pérfidas jogatinas de poder e fortuna são o contra-testemunho contínuo de quaisquer ideais fraternos e humanistas (ou assim pretensamente assumidos como tal)…

     – Todavia este é um assunto já profunda e propriamente filosófico e muito mais crítico, cujos contornos sistemáticos, teóricos e práticos, devem ser sempre relembrados, tal como aliás não deixaram de o fazer de passagem, no contexto que referimos, algumas destacadas figuras religiosas, teológicas e intelectuais da nossa Igreja Católica!
____________
Publicado em "A União" (http://www.auniao.com/noticias/ver.php?id=26050),
"Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 20.11.2011),
e Azores Digital (http://www.azoresdigital.com/ler.php?id=2166&tipo=col)




As Estratégias da Imagem


Nos últimos meses, talvez como nunca  nos passados anos, ganhou tanta importância, para a afirmação (prestígio, direitos, deveres e créditos das Autonomias, a própria imagem que de si e de nós – por intermédio das nossas instituições, actores e discursos – tem sido transmitida, por acção ou omissão, ao País inteiro.

Desde o famoso e controverso “buraco” da Madeira até aos resíduos (tristes restos, lamentáveis e penalizadores!) da dramática e irresponsável era de Sócrates a quem e à qual quase todo um (ir)reconhecível ou talvez definitivamente estigmatizado PS que (durante anos seguidos, e em peso) se rendeu e que ainda por cá vegeta ou pulula à sombra desnorteante de uma morte eleitoral possível (já anunciada, desejada ou prenunciada por outros, a quem, por seu lado, oxalá também as reservas de virtude, ou a presunção de alternativa credível, não lhes caiam pelo caminho…) –, passando pelas campanhas (quase todas falhadas!) da chamada “promoção” dos Açores e deles como “destino” – fatal e dúbia palavra esta, até nos persistentemente inócuos ou inoperantes esquissos da propaganda de um Turismo de feiras caras e certames duvidosos…

De tudo isso um pouco – dizia – nada nos tem faltado, e o que mais temos visto são enternecedoras encenações da excelência vacum insular nas rotundas da capital, marialvas incursões pelos campos e redondéis da tauromaquia lisboeta e mundial (pois então!), localmente ainda alimentada à mão e à base de expansivos intercâmbios, estatuária icónica de vitalidades perdidas, subsídios generosos para aparatosos eventos e incríveis faenas teóricas em cartazes abusivamente mensageiros de identidades forjadas (legitimadas por quem?), até às últimas da “parada gay” e do mergulho arriscado em terras (águas…) que já foram de baleeiros, de cândidos ecologistas e de cientistas e apaixonados pela Natureza e pela Beleza das nossas Ilhas…

– Só nos falta mesmo a estratégia da representação da vítima inocente ou a do bode expiatório que, até essas, não tardam aí a ser-nos ateadas ou tributadas!

É só esperar para ver…
_______________

▪ Em “Diário Insular”- http://www.diarioinsular.com (Angra do Heroísmo, 19.11.2011)
e http://www.azoresdigital.com/.

sábado, novembro 12, 2011

Ruy Belo e o Portugal Futuro


1. Na passada semana decorreu em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), o esperado Colóquio Internacional sobre o poeta, professor, tradutor (Saint-Exupéry, Montesquieu, Borges, Lorca…) e ensaísta Ruy Belo – “Homem de Palavra [s]”, como o Cartaz sugestivamente subintitulava esse promissor e conseguido simpósio cultural e académico organizado por Paula Morão, Nuno Júdice e Teresa Belo (integrando os dois primeiros também a Comissão Científica do mesmo evento).

– Esse encontro, em boa hora promovido e apoiado pela FCG, e inovadora e proveitosamente transmitido em directo pela Internet, contou ainda, para além da Conferência de Encerramento por Eduardo Lourenço, com uma Sessão de Leitura de Poemas (com Luís Miguel Cintra e Rita Blanco), e com a Apresentação de Livros – Revista Colóquio/Letras, n.º 178, dedicado a Ruy Belo; Na Margem da Alegria, Antologia organizada por Manuel Gusmão; O Núcleo da Claridade, de Duarte Belo, e Homem de Palavra[s], de Paula Morão –, conforme referido no respectivo Programa e em cujos painéis qual participaram estudiosos e investigadores portugueses e brasileiros do autor, entre outros, de Aquele Grande Rio Eufrates (1961), O Problema da Habitação (1962), Transporte no Tempo (1973), País Possível (1973), A Margem da Alegria (1974), Toda a Terra (1976) e Despeço-me da Terra da Alegria (1978), e cuja Obra Completa tem vindo a ser sucessivamente reunida e reeditada (pela Presença, pelo Círculo de Leitores e pela Assírio & Alvim).

2. Nascido em S. João da Ribeira (Rio Maior, 27.02.1933) e falecido precocemente (Queluz, 8 de Agosto de 1978), Ruy Belo primeiro cursou Direito em Coimbra (1956), doutorando-se logo de seguida em Direito Canónico (com uma tese intitulada “Ficção Literária e Censura Eclesiástica”, na Universidade de S. Tomás de Aquino/Angelicum, em Roma), vindo, mais tarde (1967) a licenciar-se também em Filologia Românica, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.


– Entretanto, após o acima referido doutoramento e a quando do seu regresso de Itália ao nosso país, Ruy Belo – então membro activo do Opus Dei, organização que viria depois a abandonar – trabalhou intensamente na área educativa e na divulgação intelectual, sociocultural, filosófica e religiosa católica (tendo sido director literário da memorável Editorial Aster e chefe de redacção da revista “Rumo”, onde publicou ensaio e crítica), e director-adjunto do director do Serviço de Escolha de Livros do Ministério da Educação Nacional, cargo que abandonou quando ia ser nomeado director. Profissionalmente, Ruy Belo fez ainda estágio para advocacia como subdelegado do Procurador da República, enquanto se distinguia como colaborador de jornais, revistas e suplementos culturais portugueses no “Diário de Notícias”, “Diário de Lisboa”, “Rumo”, “O Tempo e o Modo”, etc.

Todavia, devido às suas conhecidas posições políticas e ligações à Oposição ao regime do Estado Novo, à participação na greve académica de 62 e à candidatura a deputado, em 1969, pela CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática) – que, recorde-se, disputando terrenos oposicionistas democráticos e demarcando-se portanto do PCP e da sua subalterna CDE (Comissão Democrática Eleitoral), mais tarde Movimento Democrático Português (MDP/CDE), integrava especialmente socialistas ligados a Mário Soares e à ASP (Acção Socialista Portuguesa, antecedente e primórdio da criação do PS), algumas personalidades católicas, independentes e elementos monárquicos (Francisco Sousa Tavares, Sophia de Mello Breyner e Gonçalo Ribeiro Telles, por exemplo) –, Ruy Belo logo viu as suas actividades profissionais e institucionais condicionadas e a sua vida pública e privada vigiadas pela PIDE…

– Assim e então, tendo-lhe entretanto sido concedida uma Bolsa de Investigação pela FCG, Ruy Belo acabaria por ir para Espanha, exercendo Leitorado de Português na Universidade de Madrid (entre 1971 e 1977, ano em que regressou a Portugal e foi ensinar na Escola Técnica do Cacém, a turmas do ensino nocturno…, por lhe ter sido recusada a possibilidade de leccionar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa!). Todavia, em 1991, viria a ser condecorado, pelo Presidente da República, com o grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Sant'iago da Espada, a título póstumo …


3. Escrita marcada por intertextualidades várias (Pessoa, a Bíblia…) e por intencionalidades e imagísticas de pendor existencial, religioso e sociopolítico – umas vezes directas, outras apenas sugeridas num discurso que amiúde se revestiu de recortes narrativos e de resistência ética, crítica do quotidiano e até de uma acidez angustiada com que desmontava ou (re)construía um senso comum de realidade sobre o qual – como escreveu Óscar Lopes – provocava “um pequeno sismo vivificante” –, a Poesia de Ruy Belo denota um verdadeiro e diligente trabalho sobre o texto literário e um simultâneo compromisso do Escritor, exacta e lapidarmente assim mesmo dito homem de palavra(s), título aliás de um dos seus livros (editado em 1970 nos Cadernos de Poesia das Publicações Dom Quixote) e do recente Colóquio, conforme acima referimos.

– Lembro-me muito bem das primeiras leituras que da sua obra me foi dado fazer, por indicação de minha mãe e por intermédio então de amigos comuns seus, do movimento dos Cursos de Cristandade e do Opus Dei, e não poucas foram as vezes que a eles depois recorri na actividade lectiva, em encontros de reflexão e em recitais promovidos na ilha Terceira.



Mas de entre essas sensibilizantes leituras recordo especialmente as dos poemas “Nós os vencidos do catolicismo”, “Quadras da alma dorida”, “Palavras de Jacob depois do sonho”, “ Na praia” e – como não podia deixar de ser – “O Portugal futuro”, aquele do passado (o de ontem propriamente dito, mas ainda, enraizadamente como fatalidade opressora, em parte herdada, imposta ou consentida desse tempo sombrio nos recorrentes estigmas e vícios do nosso dramático presente!), sobre cujo leito negro poderá ser duro edificar o nosso desalmado e amordaçado amanhã…
____________
 
Publicado em "A União" (Angra do Heroísmo, 12.11.2011):
Azores Digital: http://www.azoresdigital.com/ler.php?id=2165&tipo=col,
e "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 13.11.2011).

Os Bordões e os Nós


Quem prestar atenção aos discursos e bordões de linguagem que enxameiam o espaço público circundante, não deixará de impressionar-se com a recorrência de uma série de conceitos, juízos e envergaduras de raciocínio…

– Modismos vários, apoios elocutórios para balbuciações, toques de claque e pausas mimadas (quase sempre da voz do dono ou do chefe, até aos limites do tom menor), enriçados ou seriados pontapés na gramática e nos cós da consciência…), – um pouco de tudo isso nos é dado colher nas tribunas, dichotes de bancada ou afoitos depoimentos eloquentemente emitidos pelos nossos mais prodigiosos actores, empreendedores mediáticos e políticos!

Porém, com o acentuar da crise (ubíquo vocábulo-gazua para toda a palha que se queira servir à mesa ou ao redil dos leigos na matéria), também nos vem chegando outras expeditas nomenclaturas, girando à volta de cifras que nem moeda cunhada em roleta para comprar e vender pescado e almas em cesto roto…

Ora vários daqueles bordões – que tanto podem ajudar a pensar, como nada significar –, vem bastas vezes determinados a partir de discursos, truques e ideologias híbridas e contraditórias! E então nas áreas da Economia e da Gestão da coisa pública ou privada – mas mais na primeira, que não pesa na bolsa pessoal dos seus transitórios (ir)responsáveis, e aonde se falsificam até as escarmentas dos melhores mestres… – nem se fala, de tanto ali estarem pautadas as banhas e as bainhas com indubitáveis obviamente(s), e cuja evidência, suposta, a ninguém, pelos vistos, deveria escapar!

– Mas oxalá que de tais iluminações nos livre o sombrio destino sorte, ao menos para não regressarmos às tentações do do Otelo, ou aos olés que o dito sonhou implantar por sobre a inteligência submissa e humilhada do que resta do nosso País, para quem os históricos nós na língua e as proverbiais varas no lombo, ciclicamente, parecem às vezes ser mesmo o consentâneo corolário da sua fatídica e culpada decadência.
________________
Publicado em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 12.11.2011):

sábado, novembro 05, 2011

Os Aparadores de Relvas



aparadores de tudo e para quase tudo, neste nosso variegado e cada vez mais plano mundo de Deus, seres e discursos – conforme o denominou Thomas L. Friedman –, que é como quem diz, ou apenas o rebatiza, cada vez mais unidimensional (para usarmos aqui a expressiva conceptualidade crítica do velho filósofo Herbert Marcuse…).

Contudo, o supracitado e aduzido adjetivo (plano) e a respetiva realidade visada ou projetada – embora talvez mais rigorosamente ditos e perspetiváveis como bidimensionais – isto é, como e em horizontalidade niveladora de todas as redes, sistemas e subsistemas da globalização planetária (então reduzida a essoutra configuração georeticular) –, na verdade podem mesmo aparecer-nos assim aplanados, devido aos efeitos conjugados dos múltiplos e hegemónicos torniquetes e prensas do Poder, da Economia e da Comunicação que foram preenchendo, rasoirando ou arrasando crescentes vetores, diferenciações ou coordenadas (ainda cartesianas ou já maquiavélicas?) de uma talvez ultrapassada Modernidade planetária, nacional e regional (esférica essa, e para a qual os Portugueses até terão contribuído decisivamente, conquanto ela mesma, não raras vezes, sociohistórica e civilizacionalmente desigual, desequilibrada, predatória e injusta!).

– Porém, na homonímia que o termo aparador leva no seu bojo semântico, também se podem integrar outros artefactos, instrumentos, recursos e gadgets humanos e políticos, desde aqueles patrimónios de sala ou cozinha (que certas famílias, à falta de outros brasões, às vezes herdam e outras desprezam!), até aos moderníssimos aparadores de capim colonial (ou suposto cerrado em pasto daninho…), ou mesmo àqueles, ainda mais recentes e assombrosos, mecanismos nanotecnológicos que desviam a luz de certos objetos evidentes, tornando-os invisíveis e como que inexistentes ou insignificantes

– Ora é precisamente a alguns destes últimos, a quase todos eles, infelizmente, que se assemelham as aparadoras atitudes moucas e os desprezíveis aparadores do jogo, dos gestos e dos discursos de um tal de relvas, ministro-aparadeira do reino e sabe-se lá de que outras mais repugnantes confrarias, sub-reptícia ou secretamente antiaçorianas e antiautonómicas!
__________________
Publicado em:
Jornal "A União" (Angra do Heroísmo, 05.11.2011): http://www.auniao.com/noticias/ver.php?id=25869
Azores Digital: http://www.azoresdigital.com/ler.php?id=2163&tipo=col
Jornal "Diário dos Açores (Ponta Delgada, 06.11.11)
Primeira versão: Jornal "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 05.11.11):
http://www.diarioinsular.com/

sábado, outubro 29, 2011

As Janelas da Lusofonia



À semelhança do que tem acontecido em outras Revistas culturais e literárias portuguesas, no seu último número (1071, de 19.10-1 a 1.11.2011) o Jornal de Letras, Artes e Ideias (JL) dedicou a respectiva capa e parte substancial dessa tiragem à obra do autor de Os Lusíadas, a propósito destacando a anunciada e tão merecidamente aguardada publicação, pela Editorial Caminho, do novo e monumental Dicionário Luís de Camões, obra organizada pelo Prof. Vítor Manuel de Aguiar e Silva (distinto Académico, Investigador e um dos maiores peritos mundiais na área da Teoria e dos Estudos Literários), a quem – também por relembradas ligações familiares comuns à Praia da Vitória, aonde por estes dias tem lugar um Congresso da APEL e uma série de eventos integrados no “Outono Vivo” (http://www.outonovivo.com/) precisamente em VI edição e sob a égide temática da Lusofonia – felicito pela final concretização desse tão acalentado e precioso projecto para o estudo, conhecimento, ensino, cultivo e divulgação universal da Língua e da Cultura Portuguesas.

– Ora, ainda por esse especial ensejo editorial, nas páginas do JL foram publicados alguns apelativos extractos de Verbetes da obra (nomeadamente da nossa estimada colega, professora da Universidade dos Açores e já distinta camoniana, Maria do Céu Fraga); um sucinto Inquérito a diversos escritores e poetas; um ensaio sobre o ensino escolar e universitário de Camões, e bem assim e sobretudo, assinaladamente, uma muita sugestiva e elucidativa Entrevista com Aguiar e Silva, na qual são especificados o conteúdo, a estrutura, os critérios e a metodologia crítica que presidiram à organização do seu Dicionário.

De resto e para além do mais, merecem logo registo as exemplares palavras de evidente fascínio com que o organizador deste actualíssimo épico labor refere aquilo que sempre o atraiu na Lírica, tudo quanto continua a seduzi-lo hoje em Os Lusíadas e na magna obra de quem tão alto cantou tanto as gestas gloriosas como os fatais destinos da Pátria e da lusa Gente:

– “O poema é uma magnificente construção verbal, retórica e estilística, uma deslumbrante tapeçaria de mitos, símbolos e alegorias, uma espantosa apropriação intertextual de motivos, tópicos e estilemas, uma celebração jubilosa da glória das navegações e das conquistas, uma reflexão de surpreendente modernidade sobre os riscos e malefícios dessas mesmas navegações e conquistas e dos seus objectivos imperiais, uma denúncia corajosa e pungente dos abismos em que se afundava Portugal. O fulgor solar da gesta heróica e as sombras da noite que veio, como há de dizer Pessoa. Uma voz contraditória, agónica, sebasticamente utopista e angustiadamente lúcida”.




Todavia, outras e muito pertinentes considerações foram ali retomadas por Aguiar e Silva, no que concerne especialmente às potencialidades e à difusão educativa, histórico-cultural, estético-literária e linguística – com os respectivos e fundamentais modos de presença curricular, didáctico-científica e pedagógica – a privilegiar na obra de Camões, o mesmo podendo dizer-se afinal, em todas as Disciplinas e áreas do Saber, com e nas obras de todos os Clássicos, como Italo Calvino propunha, e tanto mais quanto é de recear, sublinha mesmo o Prof. Vítor Aguiar e Silva, que, no domínio presente, “boa parte dos professores não tenha adquirido no ensino superior a indispensável formação (…) para guiar os alunos a conhecer, a admirar e a amar Camões”…

– Porém, oxalá e progressivamente que tal deixe de acontecer em todos os espaços da Lusofonia e em todos os possíveis horizontes disciplinares, com autores Clássicos e/ou ainda não universalmente consagrados, quando ao menos os lerem, previamente os estudarem, trabalharem e procurarem compreender a fundo e criticamente, com eles convivendo amiúde e assim, madura e competentemente, podendo vir a transmitir a outros um sempre renovado e verdadeiramente fascinante sentido, por pequenino que seja (e aí depois, desse único modo, com métodos e conteúdos sólidos, motivadoramente aplicáveis também às tantas vezes ainda confusas estratégias das interdisciplinaridades insulares…), das grandes e históricas narrativas do Espírito, através da iluminadora visão que simples mas abertas e transparentes janelas (nacionais e regionais) poderiam modernamente ajudar a revelar e inspiradoramente espelhar da Humanidade inteira!
_____________________

Em "A União" (Angra do Heroísmo, 29.10.2011): http://www.auniao.com/noticias/ver.php?id=25791;

"Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 30.10.2011);


Outra versão: "Os Destinos de Camões", em "Diário Insular",
Angra do Heroísmo, 28.10.2011: http://www.diarioinsular.com/

sábado, outubro 22, 2011

As Sombras da Revolta


A semana que findou foi sem dúvida marcada pelas anunciadas e temíveis medidas governamentais de austeridade, previsão de cortes salariais e subsídios, penalizações tributárias, potenciação de nefastos efeitos no desemprego, despedimentos e falências, conjecturável recessão económica sistémica, etc., – tudo proposto ou decorrente do próximo Orçamento de Estado/Troika e nele plasmado pelo Governo PSD/CDS como mais um dos ditos frutos amargos das heranças, internas e externas, efectivamente recebidas ou tacticamente invocadas…

As reacções a tal torção do País e – também com algum recurso tardio, mas muito conveniente agora, diga-se… – às suas acrescidas expiações esburacadamente endossadas às Autonomias Regionais, não se fizeram esperar, vindas de quase todos os sectores, formações e classes sociais, e bem assim dos mais diversos agentes, atores, comentadores e analistas, politólogos e economistas (alguns destes, mais próximos dos puros e duros crânios da Escola de Chicago e alheios às determinações e fundamentos filosófico-políticos e ideológicos da Economia como Ciência Social, apenas compulsando cálculos e quantificações redutoramente economicistas e técnico-contabilísticas), sindicalistas desesperados, empresários e patrões aflitos, IPSS e ONG alarmadas, constitucionalistas e juristas divididos, movimentos cívicos indignados, intelectuais, filósofos e cientistas sociais em protesto, cidadãos em pânico, e – doutrinal e evangelicamente – a Igreja Católica!

Todavia, de entre todas as mais notáveis, paradigmáticas e controversas ou consensuais intervenções criticamente assumidas e que os OCS e as Redes Sociais registaram segundo perspectivas radicalmente opostas e/ou coincidentes, julgo merecerem destaque as seguintes:

     - D. Januário Torgal Ferreira (sem meias tintas de sermão ou missa cantada, fustigando os descomedimentos do Poder, do Governo e da Finança);

          - Boaventura Sousa Santos (na constatação da emergência da contestação e da explicitação da necessidade de uma alternativa profunda ao establishment político-constitucional, social e económico-financeiro vigente);

     - Bagão Félix (democrata-cristão, de consabida sensibilidade social, acentuando a injusta desproporcionalidade e falta de equidade nas bitolas fiscais preconizadas);

     - Mira Amaral (apelante abencerragem palavrosa da histórica baronia “social-democrata”, figura recorrentemente tutelar das mais recheadas e conspurcadas garagens de interesses e antigas carroçarias de prebendas bancárias e empresariais que ainda desgraçadamente enlameiam o presente e o futuro de certos expoentes do que resta do partido fundado por Sá Carneiro, e que, não há muito tempo sequer, distinguira-se novamente pela vulgaridade compulsiva do discurso político-partidário com que brindou uma sua companheira e adversária no PSD, a ponderável “velha senhora” Ferreira Leite…);

     - Gomes Canotilho (reconhecendo a possível inconstitucionalidade formal de algumas das excepcionais decretações agora impostas);

     - Bruto da Costa (com a sua objectiva análise, resistente coerência e profética denúncia social e ética dos riscos globais da galopante Pobreza em Portugal);

     - e finalmente (em acentuada e frontal fluência magistral!) o Presidente da República, Cavaco Silva, com o seu corajoso, muito crítico, precaucional e lúcido discurso ao Congresso dos Economistas (disponível em http://www.presidencia.pt/?idc=22&idi=58158), aplicando, específica e coerentemente à praça político-económica e societária lusas, perante a embasbacada e encolhida consciência da turma governamental e das formaturas partidárias que a suportam, aquilo mesmo que há semanas tinha análoga e incisivamente defendido, no Instituto Universitário Europeu de Florença, para a macro-escala económico-política europeia!

– E é assim que da atenta análise de todas essas intervenções e das circunstâncias e acontecimentos que as motivaram, para usarmos as metáforas biomédicas e existenciais tão usuais nestes dias de depressão e náusea nacionais, fica a evidente certeza de que nenhuma cura de nenhum mal poderá ser feita sem diagnóstico diferenciado e terapêutica holística, psicossomaticamente equilibrada e com regulação homeostática…, o que é o mesmo que constatar que a política financeira e a contabilística económica, quando exercidas à revelia da recta e superior ordenação do Bem Comum dos corpos sociais e contra toda a normatividade personalista e ética da Justiça, do Desenvolvimento Integral, da Solidariedade e da Liberdade, mais não suscitam, configuram e potenciam do que a cancerização de todos os tecidos e órgãos comunitários – leia-se sofrimento, injustiça, opressão, miséria, estagnação, ressentimento, violência, criminalidade… – e um crescente, daí resultante e legitimado direito à indignação, à revolta e (quando não até…) à Revolução, como as lições da História mostram e, muitas vezes, exigem mesmo.

Todavia – como acaba de lembrar Eduardo Lourenço, evocando europeias sombras, os riscos e os perigos “dos caos regeneradores, da mitologia do caos wagneriano e da defesa de que o caos regenera” –, não deve a justa indignação ser apenas usada como arma, porquanto ela é mais da ordem e da natureza dos sintomas

– Por isso é que, mais do que apelos à Revolução, o que deve advogar-se é uma outra Democracia, “o mínimo exercício dela” em tudo, a começar certamente também na vontade e no direito dos Povos, Nações e Regiões ao democrático exercício da rejeição daquilo e de quem os domina, explora e impiedosamente acabará por destrui-los!

-----------------------------
Publicado em "A União" (http://www.auniao.com/noticias/ver.php?id=25703) e "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 23.10.2011) e "Azores Digital" (http://www.azoresdigital.com/ler.php?id=2160&tipo=col).
Outra e primeira versão em "Diário Insular": http://www.diarioinsular.com/ (Angra do Heroísmo, 22.10.2011).

sábado, outubro 15, 2011

Alegrias e tristezas políticas



A mais ou menos esperada confirmação da não recandidatura de Carlos César à presidência do Governo Regional dos Açores não colheu propriamente ninguém de surpresa, tanto mais quanto apelos a outras airosas saídas ético-politica e juridicamente consentâneas – aceitáveis e até mais do que desejáveis para um PS outro, confiante e consciente de si –, não tiveram acolhimento corajoso, para gáudio imenso, calorosos louvores e aliviados suspiros de insuspeitos adversários e permanentes meninos e meninas de coro e corte…

Todavia, certamente pesados bem interesses pessoais e os do PS, lá se optou por essa solução (conquanto de risco certo!), já brilhando mesmo nas ilhas uma girândola sobre os rumos do líder (mais provisório agora, a prazo definido e curto):

– E é assim que disjuntamente o vislumbram apenas na liderança do PS-A; na cadeira presidencial da ALRAA (conforme os recortes inimagináveis de uma improvável revisão constitucional…); na calha para a corrida presidencial da República (liricamente versejada por Alegre), ou, enfim, na expectativa de protagonismo mais nacional, com um regresso do PS em força à AR, ou a um executivo de bloco central (coisas de puro delírio, após a herança quase criminosamente deixada, e submissa e pateticamente consentida por escusado tempo e por tantos fadistinhas e comparsas da repulsiva figura desse nominal clone menor do sábio e do similar fado da Grécia (que já Eça a químicos papeis de nós tirou, berço antigo e parcial de uma ciclicamente desalmada Europa, a mesma que Soares e agora Cavaco tanto fustigam…) – e da sua vil regência nesta bipolar Nação (cada vez mais em asfixiante estado de choque, sítio societário e sonambulismo explosivo) que o governo de Lisboa, com a miserável ajuda de OCS, irresponsável e paranoicamente cada vez mais vai subliminarmente induzindo à arruaça e à insurreição violenta (e que só a lucidez da CGTP será, talvez, capaz de evitar!).

Mas quanto ao nosso Eça, sempre tão actual em “As Farpas” de Uma Campanha Alegre, onde, como ele diz, não há com efeito senão “uma transbordante alegria”, “um riso que peleja” – “Que peleja por aquilo que eu supunha a Razão. Que peleja contra aquilo que eu supunha a Tolice” –, releia-se, tristemente todavia, o que próprio constatou (já também…) em Janeiro de 1872:

– “Nós estamos num estado comparável somente à Grécia: mesma pobreza, mesma indignidade política, mesma trapalhada económica, mesmo abaixamento dos caracteres, mesma decadência de espírito. Nos livros estrangeiros, nas revistas, quando se quer falar de um país caótico e que pela sua decadência progressiva poderá vis a ser riscado do mapa da Europa – citam-se, a par, Grécia e Portugal. Nós, porém, não possuímos como a Grécia, além de uma história gloriosa, a honra de ter criado uma religião, uma literatura de modelo universal, e o museu humano da beleza da Arte. (…) Como deve ser infeliz um rei inteligente (ou, hoje, qualquer Presidente digno desse nome…), quando, caído em cepticismo e misantropia pela certeza que adquiriu de que está no meio de uma pocilga política…”!

E quanto aos Açores, aos brindes, lágrimas de alegria, hipócritas reverências e inocentes ou quase evangélicas laudes – imagine-se! – pelo cumprimento da palavra, nada disso também é para admirar.

– Porquê, ou à custa de quem, é o que se comprovará depois…

-----------------
Publicado em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 16.10.2011), "Azores Digital" (http://www.azoresdigital.com/ler.php?id=2157&tipo=col) e "A União" (http://www.auniao.com/noticias/ver.php?id=25630).
Primeira versão em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 15.10.2011).




sábado, outubro 08, 2011

O Cardeal e as mãos da Política



Causaram sintomáticas reacções a diferentes níveis e género de vocabulário e discurso, as recentes declarações, em entrevista ao JN, do Cardeal Patriarca de Lisboa sobre a acção política directa tal “como ela é feita hoje”, sendo que, segundo D. José Policarpo, desse preciso contexto e definido campo “ninguém sai com as mãos limpas”!

– De facto e na sequência da manifestação de tal juízo, logo se multiplicou nos OCS e nas redes sociais toda uma série de comentários também bastante preenchidos por considerações provindas de algumas figuras e personalidades nacionais, regionais e locais, mormente da área político-partidária e jornalística...

Ora, como é sabido, a expressão “mãos sujas” (e/ou a antítese “mãos limpas”) tem sido paradigmática e historicamente usada em múltiplos registos e domínios discursivos (v.g. filosóficos, literários, estéticos, jurídicos, religiosos e morais), significando, real ou metaforicamente, toda uma fenomenologia da culpa e/ou uma espécie de violação, consentimento cúmplice ou atitude de transgressão de princípios ou de valores essenciais (nomeadamente os relativos à liberdade, à integridade do carácter, à honestidade na prática de actos, à autenticidade moral, à coerência entre os meios legítimos e a bondade dos fins, à transparência nas palavras e nas acções, à sinceridade, à verdade, etc.), estando ainda a mesma locução presente em obras literárias de pendor existencial reflexivo, como por exemplo no teatro sartriano de As mãos sujas (traduzido há anos para português por António Coimbra Martins) e no Camus de Os justos (também editado entre nós com um belo prefácio de António Quadros).

– E isto para já não falarmos nas conhecidas operações políticas, policiais e judiciais anti-corrupção que, por esse mundo fora, foram crismadas com similar código expressivo (bastando lembrar apenas as efectuadas no Brasil e as muito solicitadas e perdidas em Portugal, ou aquela famosíssima e italiana "Mãos Limpas" ("Mani pulite"), nos anos 90, que tentou sanear as finanças vaticanas das mafiosas golpadas bancárias e ambrosianas da Loja maçónica P2…

Porém, no caso actual, o que parece ter causado muita e maior indignação a alguns dos ditos e feitos (todos?) comentaristas – para além da ainda razoável crítica a uma possível (ou descuidada?) generalização inclusa no seu pronunciamento (o tal “ninguém”…) – foi o facto daquelas afirmações terem sido proferidas por um alto responsável da Igreja, – e vai daí foi um tal desancar na sua pessoa, na Instituição a que pertence e que também superior e responsavelmente representa, chamando-lhe (sem recuo sequer perante interjeições vulgares e ordinarices linguageiras!) de tudo e do pior, evocando-se à mistura velhas e consabidas misérias históricas reais do Catolicismo, discorrendo-se sobre calhas esquadrinhadas no mais serôdio anticlericalismo jacobino e maçónico, e fazendo-se superficial, ignorante e tendenciosa vista grossa ou distorcida sobre o inciso crítico, perfeitamente balizável e situado, que o discurso de D. José Policarpo comprovadamente contém:

– É que esse, de facto e ainda por cima, só se torna adequadamente interpretável por relação ao natural entendimento filosófico e antropológico da natureza ambígua de toda a acção política (e mesmo da pré-política, como o nosso antigo Reitor da UCP teorizava), tal como, aliás, saliento, acontece com toda a acção humana individual e com toda a própria história global da Humanidade e seus actos contingentes (enquanto e precisamente porque elas são formadas “pelas objectivações espácio-temporais da liberdade do homem, de uma liberdade empenhada e comprometida numa dialéctica de graça e pecado”…), como ele filosófica e criticamente elabora, lógica e consequentemente ainda enquanto teólogo e pastor, entre outros, no seu excepcional estudo Sinais dos Tempos (Roma e Lisboa, 1970/71).

Todavia tais pressupostos antropológicos e reservas éticas não podem nem devem implicar, nem solicitam – como também é bom ressalvar – o fomento do desinteresse, a alienação ou o resignado alheamento, pelos cristãos, da vida e da ordem sociopolíticas nas suas mais nobres, integrais e decisivas dimensões, sendo mesmo que, como a Exortação Christifideles Laici salienta, “As acusações de arrivismo, idolatria de poder, egoísmo e corrupção que muitas vezes são dirigidas aos homens do governo, do parlamento, da classe dominante ou partido político, bem como a opinião muito difusa de que a política é um lugar de necessário perigo moral, não justificam minimamente nem o cepticismo nem o absentismo dos cristãos pela coisa pública”…

– É claro que aqui e ali estamos em campos e universos conceptuais e existenciais completamente distintos, e assim o lamentável e fútil desconhecimento – pelos feitos e ditos comentadores – da pessoa, do pensamento e da obra do nosso Cardeal, não devia ter constituído gratuito móbil para tanta aversão anticlerical, parte dela a raiar até estilos de jacobinismo ou marteladas maçónicas de outrora…

E depois, ainda seria curioso (re)vê-los, a esses, noutras tribunas (políticas, jornalísticas e culturais…) menos esconsas ou ficcionais, mas em coerência de intenção radicada e idêntica verve, erguer semelhantes punhos e setas para bater, tão facilmente à distância ou à socapa, num velho académico e purpurado da Igreja em Portugal!

– Mas termino aqui:

Ainda não há muitos anos, na sequência de uma notável, exemplar e qualificada troca epistolar, depois vertida para livro com prefácio de Eduardo Lourenço, sobre o título de Diálogos sobre a Fé, Eduardo Prado Coelho escrevia a D. José Policarpo:

“O Meu Caro Amigo diz que desde sempre sentiu um desejo de pôr o diálogo em prática. Não tenho dúvidas. Se há algo que define a Igreja portuguesa, tem sido este clima relativamente recente como ela se integrou na democracia e como em muitos planos nos deu, a todos nós, verdadeiras lições de espírito aberto e dialogante. É natural que isto de faça de forma diferenciada conforme as personalidades, os lugares, as tradições e as responsabilidades. Mas a verdade é que a grande linha de orientação que neste momento domina é em muitos aspectos marcada por uma capacidade de ser positiva, afirmativa, expansiva – e isso merece de nós um aplauso unânime”.

– Boa ocasião porém e assim para um purificar de mãos, transparência de ideias e tino nas conscienciosas línguas de políticos, jornalistas e comentadores, tão pouco dignos afinal, nas suas cívica, eticamente (in)visíveis e impunes facetas… do Facebook!

----------
Publicado em: "A União" (08.10.2011): http://www.auniao.com/noticias/ver.php?id=25539,
"Diário dos Açores" (09.10.2011) e Azores Digital (http://www.azoresdigital.com/ler.php?id=2155&tipo=col).
Primeira versão em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 08.10.2011).

sábado, outubro 01, 2011

A alma e o corpo do PS

                                                            A consciência das dificuldades impede o facilitismo, enquanto
 a consciência das alternativas impede a autoflagelação".
                                                                                                                       BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

A possibilidade da(s) recandidaturas(s) de Carlos César à(s) liderança(s) do PS-Açores e/ou a um novo mandato como presidente do Governo Regional, como é sabido, continua(m) a constituir motivo de tácitos silêncios externos e debates internos sobre os estados presente e futuro da vida regional, naquele e nos outros partidos, no Executivo açoriano, nos OCS e na opinião pública (aberta ou privadamente manifestada…).

– Porém, e embora uma provável decisão já tenha sido alegadamente tomada pelo próprio – e até mesmo hipoteticamente transmitida a um reduzido e confidente círculo de auditores, agentes, militantes e decisores políticos muito chegados –, talvez que a decorrente resolução final ainda não tenha sido definitivamente pesada, medida e irremediavelmente assumida por ele e por todas as partes, actores e parceiros interessados, muitos deles nem querendo sequer arriscar inequívocas tomadas de posição convincentes, solidárias ou demarcantes, com receio delas poderem vir a condicionar ou, pior, a colidir com o do seu indiscutível líder, – e tanto mais quanto César vai recusando que lhe passem (política e metaforicamente, bem entendido!) “certidão de óbito”, todavia enquanto também, aparentemente, não consente, não fomenta nem incentiva, qualquer sinal ou movimento catalisador da sua esperada reencarnação (como alma aglutinadora, estruturante e dinamizadora…) no corpo bastante desvitalizado, estrategicamente híbrido e fragmentário (sem ele e sem ela…) do próprio PS-Açores!

Ora tudo isto sendo perfeitamente compreensível contabilizando os naturais pressupostos da avaliação partidária, sociopolítica e eleitoral que Carlos César vem desde sempre fazendo, já assim não o será tanto tendo em vista os específicos e legítimos interesses do PS, porquanto, exclusivamente a partir destes, a permanência do seu actual líder, simultaneamente à frente da condução do partido e como recandidato à presidência de um eventual futuro governo açoriano, parece em absoluto potenciadamente necessária, tanto mais quanto os próximos embates regionais se afiguram difíceis e exigentes, a conjuntura (nacional e internacional) problemática e aos presumíveis (alguns somente presumidos!) herdeiros ou sucessores de Carlos César, com todos os seus defeitos e indesmentíveis talentos e qualidades, a uns já não resta tempo para ganhos de maior qualificação estadística e os outros ainda não a possuem… Assim, como é perceptível, os actuais dramas e opções do PS e de Carlos César residem precisamente aqui!

– E as oposições, de corpo e alma, sentindo-o também, impacientemente esperam tirar todas as vantagens de uma sua irreparável claudicação (equivalente a uma isomórfica abdicação sem retorno!), seja ela histórico-política, democrática e constitucionalmente imposta, ou antecipada e voluntariamente infligida como autoflagelação escusada.

-------------
Publicado em "Azores Digital" e "Diário dos Açores" (02.10.2011).
Outra versão em "Diário Insular" (01.10.2011).
 



sábado, setembro 24, 2011

As Qualificações Presidenciais


A visita do Presidente da República aos Açores provocou os mais díspares, antagónicos e contraditórios comentários, avaliações e juízos de valor e intenção, vindos de quase todos os quadrantes, agentes e actores políticos açorianos e continentais, – sendo que isto mesmo pode ser constatado tanto nos OCS regionais e nacionais quanto nas redes sociais que, constituindo também já um relativo indicador societário e ideográfico, cada vez mais desempenham um papel decisivo na formação da opinião pública, na mobilização cívica e na partilha da informação.

– Ora no meio de toda aquela significativa série de pronunciamentos, análises banais, propostas pertinentes (por exemplo as do PCP) ou meros balbucios de júbilo ou afrontamento, merece justamente destaque, registo e aplauso o responsável desempenho institucional e a postura sensata, estratégica e diplomática do presidente do Governo Regional dos Açores, especialmente por relação a alguns dos seus paradigmáticos antípodas (plasmados nomeadamente no segmento de azedume e gaiatice que pautou, como infelizmente já é usual, as sentenças radiofónicas de um controverso deputado do PS à Assembleia da República).

De facto, sendo embora conhecidas e resistentes (e até, uma ou outra vez, escusadamente colidentes) as opiniões e as posturas de Carlos César em relação às ideias, visões e práticas de Cavaco Silva (v.g. no que às Autonomias Insulares concerne), bem argutos, prudentes e pertinentes foram especialmente as suas reflectidas e legítimas destrinças críticas sobre a diferenciação (a propósito dos défices e abismos madeirenses) entre a “estrutura genética”, o bom senso comum e os imperativos éticos e técnicos dos governantes e decisores públicos, – considerandos depois seguidos, na ilha Graciosa, por um delineamento adequado da nova e exigente contratualização constitucional e financeira com o Estado (no quadro das obrigações decorrentes do programa de ajuda financeira a Portugal) e com o actual Executivo central (porquanto, como lucidamente afirmou há poucos dias António Costa numa assinalável entrevista ao DN, “mesmo discordando deste Governo, é preciso trabalhar com ele”).

Porém e ao contrário do talentoso líder do PS-Açores, lá ouvimos, outra vez insolitamente, o dito e mediático orador de fita, desta feita para tecer gaio endosso de  outro destino ao PR (mandando-o preferencial e alternativamente bailar na Madeira!), numa perfeitamente gratuita, míope e tosca avaliação dos contornos e potenciais (e já agora comprovadamente reais!) ganhos açorianos e autonómicos da última peregrinação insular do PR.

Todavia tais declarações tiveram ao menos uma utilidade, nesta altura em que se acentua uma desejável perspectivação da(s) (re)candidatura(s) de Carlos César, e em que, na lista dos putativos seus improváveis sucessores, alguns teimam em fazer deslizar o nome do redito e asseado tribuno:

– É que, de entre o elenco dos compulsivos patinadores no chão encerado dos nossos escorregadios palcos, palácios e bastidores político-partidários, alguns já vão mesmo a caminho de bem merecida desqualificação estadística, de passagem à sala de arrumos da casa, ou de uma bem merecida e aparatosa queda … artística!

-------------
Publicado em:  Azores Digital (http://www.azoresdigital.com/) e "Diário dos Açores" (25.09.2011). 
Outra versão em: "Diário Insular" (24.09.2011).

sábado, setembro 17, 2011

As Teias do Sincretismo


À primeira vista, as caminhadas e peregrinações que por esta altura se realizam na ilha Terceira a Nossa Senhora dos Milagres da Serreta, e o discurso de Carlos César no último Congresso do PS em Braga nada terão em comum; e todavia…

Nos seus estudos sobre as novas configurações dos sistemas, geografias, práticas, crenças e pertenças religiosas contemporâneas – nomeadamente a partir de uma sugestiva proposta de análise das categorias-tipo do convertido e do peregrino –, Danièle Hervieu-Léger salientou a profunda ligação existente entre os processos de construção existencial e simbólica das identidades individuais e colectivas, e as modernas (des)regulações sociais, institucionais e de poder ideológico e espiritual, nomeadamente aquelas que se exprimem sob a forma de um grande sincretismo flutuante e de bricolage.

– E entre nós também assim acontece, pelo que é urgente comparar este fenómeno com outras manifestações formais mas de tangência conflitual no mesmo campo societário, que aqui e ali vão convergindo, tanto mais quanto a mera participação observante nas “idas à Serreta” e seus crescentes e proliferantes catalisadores e adjacências bem o reclama e sinaliza…

Entretanto e por outro lado – citando António Brotas quando escreve que “o PS não volta ao poder, ou pelo menos não volta trazendo um benefício para o País, sem uma grande transformação interna” –, José Medeiros Ferreira, com a habitual intuição, competência, experiência e visão da realidade sociohistórica portuguesa, num depoimento sobre o referido Congresso do PS, com justeza salientou que, sobretudo agora, deverá o partido “manter-se firme na representação política dos mais desprotegidos e de uma classe média largamente ameaçada”, enquanto que um seu novo ciclo implicaria mesmo uma profunda e necessária reflexão crítica, tanto mais quanto os “erros que se podem perpetuar devem ter prioridade no balanço crítico”, com “renovação das estruturas, mas com uma boa mistura de juventude e experiência”, porquanto o “mero critério geracional e a enorme teia de apoios recebidos podem ser o caminho mais curto para o congelamento de uma refundação”.

– Ora de refundação e de outras coisas igualmente responsabilizantes, importantes e a merecer atenção também falou Carlos César na sua assinalável intervenção naquele recente Congresso socialista, conforme está disponível e pode ser revisto em http://www.ps.pt/ps-tv/pstv/discurso-carlos-cesar/itemid-100003.

Porém, para quem conhece os métodos e teias das estruturas típicas de todos os poderes institucionalizados ou simbólicos, o sincretismo das palavras e das acções tanto pode significar um prenúncio refundador de identidades coerentes e de fidelidade a reais valores, quanto também, pelo contrário e infelizmente, poderá não ser mais do que uma mera deambulação retórica, ainda talvez “peregrina”, mas já apenas de “bricolage” ou para inconsequente estratégia de ritualização cíclica…

_____________
Publicado em "Diário dos Açores" (18.09.2011), "Azores  Digital" (http://www.azoresdigital.com/) e ""Diário Insular" (17.09.2011).

sábado, setembro 10, 2011

Diplomacias e Ingerências


Mal sabia eu ao escrever no “Diário Insular” (DI) de 10.05.2008 que um seu Jornalista estaria novamente hoje a ilustrar alguns dos mais mediáticos sítios da nooesfera informativa e política…

– Porém, digo somente alguns, apesar desta retomada distinção muito mais e acrescida ponderação justificar sobre os respectivos conteúdos, significados e alcances!

Ora, na discutida rede WikiLeaks e seus mirrors acaba de ser vertido um Relatório – algo duvidoso na datação (30.01.2009) mas assinado pela então Vice-cônsul dos EUA nos Açores – aonde, visando-se o DI e o mesmo Jornalista, entre outros relevantes factos e dados geoestratégicos, diplomáticos, logísticos, laborais, económicos e deonto-lógicos, é feita uma interpretação do tema da Contaminação do Solo e Recursos Hídricos na Praia da Vitória.

– Todavia, se e quanto a isso parecem agora finalmente reunidos instrumentos político-jurídicos (executivos e parlamentares) potencialmente capazes para a viabilização de uma “ampla avaliação técnica do estado ambiental” das zonas poluídas e dos locais “presumivelmente contaminados por parte das entidades norte-americanas”, após concluído o pendente “processo de descontaminação e reabilitação” – conforme firme Resolução (Proposta do PS), aprovada pela ALRAA em 19.05.2011 e publicada no DR (1.ª série-N.º114-15.06.2011) –, já uma análise atenta das outras partes do dito documento (sobre “A presença militar dos Estados Unidos nos Açores”) poderá e deverá certamente vir a ser exercida pelo que revela, comprova ou desmente.

E isto para não acentuarmos já algumas das distorcidas leituras da realidade regional, das relações bilaterais e das negociações entre os nossos Países, que são ali urdidas contra a melhor e trustful tradição da grande Nação nossa amiga e aliada, à revelia da proclamada nova diplomacia de Solidariedade e rule of Law (que deve fundamentar a única filosofia e prática do Direito e das Relações Internacionais moralmen-te legítimas e soberanamente exigíveis), desde os mais credenciados departamentos dos Estados e das Regiões até ao nível dos pretensamente elucidativos cables de funcionários ou snipers menores (decalcados dos modelos e armas de ingerência das velhas agências consulares coloniais ou terceiro-mundistas, com ou sem real intelligence…).

EDUARDO FERRAZ DA ROSA
-------
In "Diário dos Açores" (11.09.2011); "Diário Insular" (09.09.2011) e "Azores Digital".

segunda-feira, outubro 18, 2010

A SETE PASSOS DE TI

APRESENTAÇÃO DO LIVRO
A SETE PASSOS DE TI
DE MARIA ARMANDA SANTOS

É sob evocação e para Lançamento da obra A sete passos de ti que intencionalmente começamos e nos encontramos hoje aqui, neste espaço bem simbólico e num envolvimento humano muito significativo, certamente, para todos nós – o que, nesta ocasião, me permito salientar –, porquanto eles, de certo modo, se prendem à vida e às heranças e envolvimentos da nossa jovem autora, Maria Armanda Santos.

Já conhecido o seu perfil biográfico e sinalizadas algumas pistas de leitura no Prefácio que tive o gosto de colocar no pórtico desta edição – e deixando portanto, neste ensejo, para Rodrigo Leal de Carvalho o abalizado desempenho formal de uma Apresentação propriamente dita ao livro cujo vinda a público celebramos, e bem assim endossando à Judite Parreira a sugestiva recitação expressiva de alguns dos seus seleccionados excertos –, limitar-me-ei pois e apenas a pontuar umas breves notas de abertura e mais ou menos de rodapé, mas confluentes, sobre a nossa novelista, a sua obra e os universos da escrita que nelas, ou a propósito delas, me foram suscitados.

Começo por reafirmar que não me foi nada difícil encarar com simpatia e responder positivamente ao gentil pedido que me foi feito para que prefaciasse esta obra:

– De facto, tantos e tais são os factos e as vivências próximas que me ligam à família da Maria Armanda que, ao vê-la, com 18 anos personificando figura de escritora, logo me lembrei que, no seu caso, de comprovado modo, bem se podia justificadamente repetir, como diz o ditado popular, que “quem sai aos seus não degenera”…

Desses seus, familiares relativamente chegados, bem me inclinei logo a lembrar dois (para já nem referir, evidentemente, ainda o nosso Apresentador desta noite, cuja vasta obra romanesca também tive anterior oportunidade de apreciar).

Porém – dizia – desses seus familiares relembro e invoco hoje especialmente Vitorino Nemésio (seu primo, de genealogia mais distante mas firmada) e Armando Santos (seu tio-avô), sob cujos auspícios propiciatórios, digamos assim, desejo precisamente colocar esta promissora estreia literária aqui neste nosso comum berço praiense!

Ora se do primeiro muito se tem dito, feito e escrito (embora menos se tenha efectivamente lido e mais merecidamente estudado, e ainda bastante menos, com razoabilidade e sem saturação contraproducente, se tenha dele e a fundo congeminado outras e desejáveis torres de alguns e melhores emblemas histórico-culturais…), já do segundo, como de muitos outros filhos e valores da terra, o proverbial desconhecimento público por estas bandas será generalizado e quase total…

– Mas quanto a Armando Santos – “primo e poeta” de rasgo (amigo e vizinho e companheiro de poesias, saudades, músicas, teatros e outras fitas), como o reconheceu e nomeou o mesmo Nemésio da "Casa das Tias", suas e comuns (e assim, também ainda, as da Maria Armanda), – ainda estou a vê-lo, tal como o descrevi nas Heranças da Terra, “também ele revolto no sonho (ou quase delírio…) das ilhas, naquele distante e sombrio bairro labiríntico de Lisboa, de pé no banco baixo da sua sala, como que visionário e no mais perfeito virtuosismo praiano: “Ó meu amigo Eduardo, Ó Ferraz da cambitola”, etc., etc., por aí fora, e até aqui, a esta Praia de antigamente, de agora e talvez de sempre…

É claro que falo de escritas, textos, poesias, novelas, contos e casos, mas poderia falar hoje também daquele, digo deste mesmo espaço que acolhe o Lançamento de A sete passos de ti, aqui neste paradigmático enclave conventual da ilustre e notável ex-Vila e do velho Salão Teatro Praiense e da Filarmónica União Praiense que, por via também de muitos empenhos cívicos, societária e culturalmente consequentes de alguns nossos concidadãos, parentes e amigos da Cultura, das Artes (Música e Teatro, nomeadamente) e das Letras de há quatro gerações já, se não me engano, nos une e reúne ainda na nossa Praia!

– E digo nossa, com plena noção socio-histórica e ainda institucional daquilo que este pronome realmente traduz de consciencializada e assumida pertença, velho e quase esquecido ou desprezado capital simbólico de herança e prospectiva, isto é, como resultado das obra dos nossos antepassados e, simultaneamente, como responsabilidade, ainda também nossa, no tempo presente!

– Mas que terá isto tudo a ver com a comemoração, digamos assim, do nascimento e do baptismo do livro da Maria Armanda Santos?, – interrogar-se-ão os amigos e convidados que em tão grande número, e sintomaticamente, aqui acorreram.

– Pois tem tudo!, digo eu, porquanto um Escritor e, por maioria de razão, uma jovem Escritora, também é isto mesmo que neles se reincarna e perpetua: uma memória, uma inteligência, uma vocação e uma vontade de linguagens, afectos, imaginários e valores sempre criativamente renováveis e transmutáveis à luz daquilo que vai sendo inspirado pelo mundo subjectivo, pelas aprendizagens, pelas afinidades liminarmente conscientes ou subconscientes, e depois também pelos mundos colectivos, pelos sonhos e pelos mitos que a todos e a cada um é dado intersubjectivamente viver e narrar…

E posto isto, com que termino, vamos continuar o nosso serão cultural, novamente com A sete passos de ti e com a expressividade das suas figuras e construções literárias, também elas reveladoras – na exemplaridade feliz, e na nova e autónoma existência que todas as obras, discursos e textos sempre ganham relativamente a nós, ou a quem os produz, ao serem lidos, ou dados ao convite da leitura por outros, – e todos, afinal, a seus modos e géneros e destinos diversos, análogos ao risco a às promessas e às esperanças do Amor, esse único e maior sentimento que supera a finitude de tudo e todas as nossas humanas limitações, – tal como a Maria Armanda, tão bela e felizmente intuiu e ficcionalmente lhes deu forma textual e voz genuína nesta sua esmerada primeira novela, conforme tão poeticamente as suas Cartas mais ainda acentuam, para que sigamos, vacilantes ou seguros, confiantes e ressurgidos, os seus próprios passos, pela mão de Alice…

Academia da Juventude da Ilha Terceira, Praia da Vitória, 3 de Setembro de 2010

quarta-feira, setembro 29, 2010

Unidade, Historicidade e Consciência Regional

1. No horizonte da Autonomia Regional Açoriana, se há questões recorrentemente debatidas – diversamente configuradas e respondidas mas permanentemente vigentes, e assim até criticamente constituintes e estruturantes dos diferentes ideários, imaginários e concretizações político-administrativas, jurídico-políticas, socioeconómicas e culturais dos projectos e modelos aqui historicamente arquitectados (pensados ou apenas sonhados, conquistados ou somente outorgados…) –, uma dessas é, com toda a certeza, a problemática da unidade regional entre as nove ilhas do Arquipélago.

– Por outro lado, como é facilmente constatável, a inteira questão da unidade, que não é exactamente sobreponível à outra e fundamental problemática da consciência regional – tal como não é subsumível à vulgar gestão, mais ou menos táctica e tácita, das retóricas ideológicas e dos sofismas político-partidários com incidência e materialização nos distorcidos esquemas, meios, querelas e fins de muita da governação e do parlamentarismo que ainda vemos hasteados entre nós… –, não deixa todavia de ser-lhe conatural, pese embora a sua indisfarçável disparidade de conteúdos e dimensões a nível da opinião pública mediatizada (ou silenciada!), da prática comentarista (mais ou menos inócua e unidimensionalmente anestesiante) ou até das prédicas e falas do senso comum e das suas impressivas narrativas, fábulas e mitos (às vezes proverbiais e precaucionais, porquanto marcados por décadas e acumuladas lições de experiência feita e conhecimento de causa…).

2. Embora só no Século XX tenha a reflexão sobre a especificidade identitária dos Açores e dos Açorianos atingido um mais relevante e incisivo corpus teórico-prático institucionalmente materializável – dele constando núcleos accionais e críticos sobre o atraso, o progresso e o desenvolvimento insular, o fomento de uma administração capaz e capacitada, e sobre a unidade regional e os factores mais representativos, reais ou fictivos, de uma legitimação historicizada da Autonomia (enquanto modalidade possível de auto-governo ou livre administração do Arquipélago, no contexto nacional português e no crucial horizonte euro-americano…) –, só depois da Revolução de 74 e à bolina de derivas separatistas e de avanços, recuos, lutas, repressões e conquistas democráticas insulares e portuguesas (todas com fenómenos de dissensão, conversão e reconversão doutrinária, estratégica e sociológica que não vem a caso e medida retomar aqui), é que ficou, finalmente, consagrado um substancial e merecido estatuto constitucional autonómico.

– E isto apesar de, em verdade, desde bem cedo na História, na Historicidade, na Historiografia e em múltiplos outros domínios, acontecimentos e registos temporais, narrativos, geo-antropológicos, simbólicos e psico-existenciais açorianos ter sido possível detectar, ou ter relevado, presenças ou marcas daquilo a que José Enes chamou de pensamento de uma sociedade sobre si mesma e do que ela forma através da sua experiência histórica

3. É no campo do devir e do acontecer histórico, filosófico, político e societário das nossas ilhas que tem sido assim detectados, ou apenas propostos ou sugeridos, vários índices sinalizadores ou modeladores de uma espécie de potencial ou latente intencionalidade de fundo ciclicamente emergente e afirmativa da Açorianidade, ou seja, de uma ontologia regional tornada cônscia como identidade e como consciência insular açoriana propriamente ditas (conquanto só depois formalmente plasmadas na ordem jurídico-política objectiva enquanto e como Autonomia), mas sendo precisamente que, a par destas categorias e com elas, sempre aí esteve pressuposto um determinado conceito crítico da existência ou da construção da nossa debatida unidade regional!

Depois, é por isso mesmo que – tendo presente toda uma possível, embora não unidireccional nem unívoca fenomenologia do espírito da Açorianidade (tematizável ainda dialéctica mas praticamente desde os primórdios do Povoamento até hoje, em perspectiva trans-histórica, multidisciplinar e multissectorial) –, uma reflexão aprofundada e livre sobre estas afins e confluentes problemáticas e paradigmas se torna novamente muito urgente, perante uma realidade global em profunda mutação e acelerada reconfiguração nacional, pós-imperial e pós-colonial, aonde a solidez dos afectos das gerações, as solidariedades comunitárias (mais ou menos imaginadas, como as classifica Benedict Anderson, mas à escala continental, regional, étnica, religiosa ou até neo-tribal…) e as irmandades destinais de outrora perderam muito do seu perfil tradicional e do seu significado consensual, substituídas que estão sendo pelo primado do efémero, do provisório, do pensamento mole ou movediço, da liquefacção ou da fragmentação de duplo sentido das fronteiras éticas, cívicas e psico-comportamentais (como propõe Bauman), do mercado unidimensional das mensagens, dos projectos virtuais, das linguagens discriminatórias, dos hábitos dúplices e predadores, e da disseminada violentação biopolítica da Humanidade, da Natureza e dos seres vivos e sencientes, – como se já nada pudesse ou valesse a pena ser preservado, com bondade e boa-vontade, em nome de uma verdadeira, autêntica e justa grande unidade de Espírito e de Ser, de coração, de utopia ou de esperança…

– De resto, exemplares momentos reveladores destas complexas e multimodais problemáticas universais (e da sua epidérmica recepção provincial…) entre nós, sempre natural e temporalmente situados na historicidade das ilhas e nas diversas configurações epocais da sua conscientizada assumpção prática, têm sido e mais poderiam ser ressaltados nas obras clássicas dos Cronistas Açorianos; na arquivística documental e no memorialismo; na conceptualização geopsíquica, filosófica e antropológico-cultural; na produção estética, plástica, musical, etnográfica, folclórica e iconográfica; no discurso jurídico-administrativo das sucessivas tendências e movimentos autonomistas; na criação literária (poética, contista, romanesca e teatral); nos valores, cosmovisões e ritualidades da religião cristã e da religiosidade popular; no capital simbólico e comunicacional pan-insular; nas migrações, mobilidades e diásporas internas e externas, – enfim –, na convivencialidade e intercâmbios académicos, científicos, associativos e grupais ilhéus…

4. Ora assim e só assim sendo, a questão da unidade real das nossas ilhas – discutida às vezes apenas e cinicamente a partir de referências menores e de interesses exclusivistas, ou de medíocres e inconsequentes artifícios e malabarismos político-partidários (que já nem prestariam sequer, como outrora, inter-distritalmente, inter-ilhas, inter-concelhiamente e por aí abaixo, para “inocentes remoques de vizinho”, como escrevia Vitorino Nemésio, nem mais servirão para improdutivamente entretermos “a nossa humaníssima concorrência nos penhascos”…) –, talvez encontrasse, alternativamente então, um fértil, construtivo, digno e unificado campo para uma regeneração cada vez mais urgente de ideais, práticas e discursos açorianos (insulares, mas racionais e generosos!), e para uma reflexão renovada, séria e prospectiva sobre o género de vida e o modelo de sociedade e de valores que queremos construir e legar aos nossos vindouros, nesta terra comum e com as nossas existências partilhadas.

Ilha Terceira, Setembro de 2010
________

* Publicado na Edição Especial, subordinada ao tema Açores Unidos, do Semanário "Expresso das Nove" (Ponta Delgada, 23.09.2010) e reproduzido em "A União" (Angra do Heroísmo, 29.09.2010):