sábado, junho 28, 2014



Os Modelos da Festa 

De entre os valiosos estudos de Etnografia que Luís Ribeiro (1882-1955) nos deixou, contam-se alguns textos sobre as festas e tradições populares do São João na Terceira, sendo ali traçada a compósita linhagem mítica, histórico-cultural, simbólica, profana, religiosa e festiva da sua provável e distante origem pagã (ligada a ritos de fecundidade solsticiais) e da suas sincréticas modalidades ao longo dos tempos. Porém, num desses textos, de 1947, onde se dizia que “as festas joaninas cada vez mais esquecidas” estavam “em risco de desaparecerem”, o nosso etnógrafo distinguiu logo “as festas populares das da nobreza de Angra”...


– Quanto às primeiras eram as mesmas caracterizadas pela realização de fogueiras, luminárias e queimas de fogo propiciatórias, muito embora também lhes estivessem associadas outras práticas e cerimoniais com água, plantas e flores, ritos medicinais ou de esconjuro, sortes casamenteiras e coscinomâncias.

 Porém, no que se refere às segundas, já o programa era distinto, e assim, “à semelhança da corte, os nobres terceirenses organizavam bandos, cavalhadas, encamisadas, touradas, iluminações e festas religiosas” (na ermida, edificada no século XVI, no canto da Rua de São João para a da Sé) que eram acompanhadas pela “nobreza a cavalo” e, por determinação do Bispo D. Jerónimo, em 1611, também pelo “cabido da Sé”!


De resto, veja-se lá, as festas de São João, sempre estiveram tão radicadas no espírito dos terceirenses que estes as não dispensaram nunca, nem sequer em 1641 durante o cerco ao Castelo (com festejos nas trincheiras, redutos e fossos, tiros de mosquete e peças de bala); e tudo sempre em louvor do nome do Santo e dos seus nominais herdeiros, à cabeça dos quais, naquelas eras de vera Restauração, estava o monarca D. João IV, que até no dito nome “o fez Deus grande”, segundo testemunho de um clérigo seu contemporâneo...

– Ora se tudo isto nos pode levar longe no tempo, também não deixa de nos devolver ao presente, onde estamos em quase idênticos festejos, conquanto ainda à procura de modelos alternativos, mas “cercados” agora nós e armados apenas... de pólvora seca!
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Em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo", 28.06.2014),

Azores Digital:
























e RTP-Açores:


sexta-feira, junho 27, 2014


O Resplendor do Santuário
e Os Esplendores da Corte



1. Quando parecia relativamente pacificado – ou em diocesanas e irmanadas vias de silenciamento... –, o imbróglio à volta do Resplendor de Santo Cristo ganhou nos últimos dias novos desenvolvimentos com notícias sobre desaparecimentos e/ou trocas de jóias na peça; com contradições entre os calendários oficialmente anunciados para a sua famosa exposição em Lisboa; com o teor das entrevistas de D. António ao “AO” e à RDP-A (onde o essencial das questões e tudo o que se lhe vai seguir continua a ser escamoteado, ou minorado, infelizmente, sem perceptível discernimento); com a articulada multiplicação de azedumes nos OCS e nas redes sociais (onde um clérigo rústico, sem trela na língua mas com afino na aparada orelha, até julgou captar “uivos” nas vozes dos opositores à saída do Resplendor, comprovando, conquanto ignorante disso, quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur ...); e – por último – agora com a divulgação de três textos a propósito deste tema, cada um a seu modo exemplar, chegamos a uma penúltima fase desta questão, talvez até a caminho de algum esquecimento, por entre paradigmáticos e supinos (des)interesses regionais e nacionais (antes futebol, toiros, festivais de estação calmosa, acampadas noites a toque de frasquinhos aromáticos e douradas fresquinhas, deleites e remansos turísticos...), porém com reincidências modelares já prometidas para o resto do Verão que vem tardio e em concorrência de autárquicos brios, para já nem contar do que ainda falta ver neste ano e para o próximo...



2. Em todo o caso, aqui deixamos uma chamada de atenção para três textos acessíveis: um de Sandra Saldanha (presidente do Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja), que subscreve e retoma conhecidos argumentos diocesanos; outro do Museu de Arte Antiga, onde, sintomaticamente, são nomeadas “cinco jóias de exceção que ilustram o esplendor artístico da corte de Lisboa”, “...seja pelo superlativo valor material e estético, seja pelo significado espiritual e cultural que o percorre [ao Resplendor] transversalmente...” (sic); e por fim um outro, da autoria de Maria Isabel Roque, que – depois de fazer um percurso sintético mas bem informado pela génese e história do Culto e Devoção ao Senhor Santo Cristo – termina o seu aguardado, rigoroso e pedagógico artigo, com lúcidas reflexões que em excerto vamos reproduzir e que substancialmente partilhamos (1).


 3. Maria Isabel Rocha Roque é doutorada em História com a tese “Musealização do Sagrado: Práticas museológicas em torno de objectos do culto católico”, tendo integrado os comissariados das exposições Encontro de Culturas (Lisboa, 1994; Vaticano, 1996), Fons Vitae (Pavilhão da Santa Sé na Expo'98) e 500 Anos das Misericórdias Portuguesas (Lisboa, 2000). Lecciona Museologia e Património na Universidade Católica, e História Geral da Arte, História da Arte em Portugal e História da Arte Contemporânea, na Universidade Europeia (antigo ISLA). Entre outros trabalhos, é autora dos livros referenciais Altar Cristão: Evolução até à Reforma Católica (2004) e O Sagrado no Museu: Musealização de Objectos do Culto Católico em Contexto Português (Lisboa: Universidade Católica Editora, 2011), obra a que faremos referência em Crónica posterior. 

Aqui fica pois uma séria abordagem socio-religiosa, pastoral, doutrinal, filosófica e teológica devidamente fundamentada, e à qual não faltou um prudente sentido da realidade:

– “Sou irrevogavelmente a favor da musealização do património religioso (...). A musealização proporciona inequívocas oportunidades de estudo, de restauro e de divulgação de obras que são, ordinariamente, vistas num determinado contexto e segundo uma perspetiva particular. Porém, tenho lido uma série de considerações erradas em relação a este assunto: não é verdade que a Custódia de Belém não se tenha dessacralizado pelo facto de estar num museu; e também não é verdade que o resplendor seja um objeto sagrado.

“Num processo de musealização, as alfaias sagradas perdem a sacralização: ‘Não obstante as características de sacralidade atribuídas pela consagração, actualmente e para evitar utilizações abusivas dos objectos desafectos ao culto, a execração (isto é, a perda da qualidade de ungido) é implícita logo que o objecto seja desapropriado ou danificado. […] Isto significa que os objectos desafectos do ritual se encontram destituídos, imediata e inequivocamente, do conteúdo sacro que lhes esteve intrínseco, o que os liberta para funções profanas, nomeadamente, as de ordem museológica’. Além disso, as imagens de culto e os objetos devocionais não são consagrados e, portanto, não beneficiam da reserva de interdição. Constituem um sinal exterior da devoção através dos quais o crente materializa a sua crença no divino.



 “O resplendor é um dos atributos do Senhor Santo Cristo e é, igualmente, um documento do sentido estético do barroco, do gosto pelo aparato no contexto do exacerbamento das paixões e das emoções inerente à própria imagem e ao ritual a que está associada. Porém, não se trata um adereço qualquer. Trata-se de um complemento inerente a uma imagem cujo culto continua ativo. Nesta contingência e à partida, a imagem fica truncada do resplendor; o resplendor, atributo da representação da divindade, também perde leitura sem a imagem que o justifica e o seu significado ficará necessariamente truncado, caso seja apresentado apenas em função do seu conteúdo material e estilístico. Cabe, por isso, ao museu – e aos curadores – criar as estratégias que compensem ambos os fenómenos de perda e, simultaneamente, esclareçam as tutelas e os devotos acerca das vantagens e das contrapartidas decorrentes de uma ação que, além disso, é temporária.


“A questão de fundo tem a ver com a noção de património e o sentido de pertença. Mais do que à Irmandade, a imagem e o seu resplendor pertencem a quem lhe presta culto. Pois é no uso e no zelo que está o merecimento. Enquanto houver uma função de uso, esta sobrepõe-se a outras utilizações secundárias, sejam marginais ou complementares. Se for quem se opõe ao empréstimo do resplendor para a exposição no Museu de Arte Antiga, for quem lhe presta o culto e lhe garante uma contínua devoção, a sua decisão deve ser soberana porque, neste caso, a funcionalidade se mantém ativa. A quem pede o empréstimo, se estiver convicto da consistência e da articulação do projeto museológico, resta encetar uma ação de pedagogia junto da comunidade, apresentando os argumentos que justificam a inclusão da peça no programa expositivo e oferecendo alternativas para que a imagem, sem o resplendor, não perca a integridade aos olhos de quem a procure.

“Neste processo, ao invés de extremar posições, impunha-se a procura de consensos. A resolução não deveria ter sido ao arrepio de quem efetivamente zela pela preservação de um património que considera seu e, como tal, lhe garante a autenticidade”.

(1) Cf. texto integral aqui: http://amusearte.hypotheses.org/558
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 28.06.2014):






























e  "Diário Insular"  (Angra do Heroísmo, 06.07.2014):



sábado, junho 21, 2014



O Reino e as Festas


  Como antigamente era sempre considerado no estudo da História dos séculos XVI e XVII, e de alguns dos seus antecedentes lendários e narrativos medievais que remontam ao século XI e à 1.ª Cruzada, uma das razões ali apontadas para as várias e mutuamente implicadas demandas exploratórias, missionárias, comerciais, expedicionárias e geo-imperiais portuguesas em África e no Oriente (v.g. na Etiópia e Índia) foi a procura peregrina de um imaginário ou imaginado (miticamente verdadeiro ou verdadeiramente mítico) “Reino do Preste João”, fantástico e mais ou menos fantasiado rei-sacerdote aliado da Cristandade para a defesa da Terra Santa e bloqueio aos ímpetos muçulmanos.




 Nesse contexto, notícias desse suposto imperador e seus domínios, por tentativas de achamento empírico ou simples (re)criação literário-ficcional, foram chegando ao Ocidente (nomeadamente através de Marco Polo) e assim também a Portugal através de relatos de viajantes, mercadores, aventureiros e embaixadores, com destaque para os informes recolhidos pelo infante D. Pedro, por Afonso de Paiva, por Pêro da Covilhã e pelo Padre Francisco Álvares (deixando-nos este, em 1540, a Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias).


 – Todavia, inesperadamente hoje, fomos reencontrar esse velho tema histórico num recente livro de Umberto Eco (Sobre Literatura), acabado de editar pela Relógio D’Água (Lisboa, 2014), encontrando essa referência ao Preste João precisamente no capítulo “A força da falsificação” (texto que reproduz a Lição Académica Inaugural do Ano de 1994-95 proferida pelo famoso filósofo, escritor e semiólogo italiano na Universidade de Bolonha).

Porém, sendo muito sugestiva tal evocação de Umberto Eco, sobremaneira logo a mesma nos chamou a atenção por inserir-se no âmbito de uma curiosa abordagem à Questio quodlibetalis XII de S. Tomás de Aquino (ou não fosse o autor de O Nome da Rosa um profundo conhecedor da sua obra) e onde o Angélico, respondendo a uma pergunta sobre qual dos factores – o poder do rei, a influência do vinho, o fascínio da mulher ou a força da verdade – seria o mais forte, convincente e coactivo agente para motivar os homens, e logo começando por notar que, não sendo aqueles comparáveis, porque de géneros diferentes, podiam todavia, todos eles, “mover a algumas acções o coração humano”...


– Resposta sem dúvida sensata e avisada também para estes dias angrenses de bem preste festa, entre os novos guiões municipais, as abancadas tasquinhas, as crepitantes fogueiras de S. João e esquecimento da real crise do nosso sazonal e efémero reino são-joanino, aquele último, pela pesada força da verdade que esta contém, constituindo factor inquestionavelmente mais decisivo para as tais acções de constrangimento (no coração e na bolsa) dos moradores e dos sempre bem-vindos forasteiros (apesar das penalizações saturantes da SATA e de outros despudorados e impunes “inconseguimentos”, para usarmos léxico da recriadora linguagem da nossa presidente Assunção, cujos pares, esses, já lá em Lisboa se puseram au point, auto-tabelando-se de pronto e vantajosamente, à beira da estação calmosa e sem necessidade de mais informes de quem quer que fosse...)!
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RTP-Açores:



























e "Diário dos Açores" (24.06.2014):






















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Primeira versão em"Diário Insular",
Angra do Heroísmo (21.06.2014):



domingo, junho 15, 2014


As Agnosias Diocesanas
e o Resplendor da Imagem Sacra



1. Há uma semana atrás, praticamente na urgência editorial dos prelos, publiquei neste jornal uma Crónica mais a jeito de resumo temático, ou síntese, de um tema ainda então a evoluir. Mas foi bom que assim acontecesse, porquanto o assunto, que ficou entretanto ganhando novos desenvolvimentos, permite que a ele e a essa luz voltemos hoje, ou não continuasse a merecer reflexão na Igreja e em toda a sociedade açoriana esse mesmo e tão falado caso da controversa subtracção temporária do Resplendor do Senhor Santo Cristo ao conjunto das peças constituintes da integridade iconicamente sacralizada da sua Imagem própria, para declarados fins de exposição artístico-museológica em Lisboa...


 Por outro lado – conforme pudemos ir comprovando –, com crescente impacto socio-religioso, pastoral, eclesial, mediático (e até político!) – muito embora nem sempre abordado do mais exigível, fundamentado e aprofundado modo (quando não até degenerando para terrenos que extravasam a mais essencial e legítima tematização adequada) –, este confrangedor imbróglio foi também aglutinando novas, melindrosas e evidentes complexidades, conflituais reacções, díspares leituras (nalguns casos bastante despudoradas, levianas ou apenas inscientes), a par de outras significativas lacunas de reflexão e de compreensão (que foram amiúde alienadas por muitos daqueles que, por indeclinável dever de múnus e/ou correlativa responsabilidade pessoal ou institucional, em coerência, firmeza, estudo, saber e conhecimento, a tanto tinham obrigação)!

– Todavia que mais dizer de quanto este assunto continua a merecer ser levado a sério por tudo o que sintomaticamente revela, ou dissimula, da vida colectiva, dos imaginários espirituais (religiosos e profanos) e da hodierna configuração de valores, pensamentos e atitudes que estruturam mentalidades, práticas e discursos do povo e das suas supostas “elites”, classes dirigentes e corporações, agentes e actores societários?

2. Tal como sublinhei anteriormente, de entre as formas expressivas da religiosidade e da fé religiosa católica nos Açores, o Culto ao Senhor Santo Cristo ocupa lugar único e absolutamente distinto, sendo mesmo que – das diversas devoções que nestas ilhas foram ganhando e perpetuando vigências espirituais, históricas, socioculturais e festivas (populares, eclesialmente integradas ou parcialmente autónomas face à hierarquia institucional da Igreja e ao Poder secular) – as venerações de cariz crístico ou representação cristológica (direccionadas à figura e à figuração iconográfica, pictórica ou escultórica de Jesus Cristo) estão presentes e são praticadas em quase todos os lugares e contextos existenciais insulares e telúricos de crença, inconsciente e memória colectiva, reflectindo também conaturalmente as marcas das sucessivas e hegemónicas modelações tardo-medievais, contra-reformistas e barrocas da Evangelização no Arquipélago (especialmente por via dos Franciscanos e dos Jesuítas, com tudo o que histórico-dogmaticamente os seus carismas, variantes de espiritualidade, doutrina, formatos de prece e corporizações rituais, cultos e liturgia, determinações canónicas, etc., implicaram, a par, não negligenciável, de regimes de imposição dogmático-pastoral e de padronização normativa).

– E foi deste modo que a proliferação cultual e votiva, reflectida sob arquetípica forma revelacional no Ecce Homo – ou seja, na feição dolorosa, passionária e sofredora de um ícone universal representativo do Homem das Dores – conseguiu, como nenhuma outra devoção portuguesa e açoriana – exceptuando as Festas do Espírito Santo! – grandes, profundas e significativas dimensões, polarizando e acumulando depois no Senhor Santo Cristo, devido à superiormente sustentada e específica acção pessoal, e à posteridade venerante de Madre Teresa da Anunciada, tudo quanto nesse culto permanece perfeitamente identificável e ritualizado de modo ímpar e apelativo, em sua cíclica honorificação, tanto no recesso conventual do Santuário da Esperança como nas tradicionais manifestações festivas públicas, religiosas e profanas, nos Açores e nas Comunidades Açorianas, porém de modo mais grandioso na ilha de S. Miguel.


 3. Na altura em que comecei a escrever esta Crónica, aguardava-se o regresso a S. Miguel do Bispo D. António, que iria reunir com as entidades mais directamente ligadas ao Santuário da Esperança, no sentido de procurar-se um possível consenso pacífico que pudesse, com a desejável e prudente revogação da primeira decisão diocesana, impedir que o Resplendor da Imagem fosse deslocado para a referida mostra (reiteradamente com medidas de segurança asseguradas, conquanto constituindo estas apenas uma das muitas e justificadas razões a ter em conta numa proporcionalmente descontextualizada situação como a da planeada exposição e sua arbitrária narrativa e implantação artístico-museológica profana!). Mas hoje, quando termino este texto, sabe-se já (http://www.diocesedeangra.pt/noticia_2166) que o Resplendor foi mesmo, bastante à socapa, levado para Lisboa, onde se encontra encaixotado no Museu de Arte Antiga, até ser “estudado”, técnico-cientificamente dissecado e “exposto” numa mostra cuja data não está definida...

– Não resta dúvida alguma que tudo se resolveu (por enquanto) com esse grande testemunho (uma jóia de arte, artimanhas e dignidade eclesiástica!), inspiração sacro-securitária e sabedoria teológica, uma pérola de zelo artístico-pastoral, compreensão sociocultural e museológica da fé, sem tibiezas devocionais nem cedências às vozes do Povo crente!!! 

Indiscutivelmente, assim, um verdadeiro e espantoso marco “de valor patrimonial, cultural e histórico que importa partilhar com toda a comunidade humana”, para perpétua memória simbólica da actual evangelização regional, no entendimento prudente e consciencioso do nosso iluminado e ilustrado Prelado, da sua clerezia conselheiral e dos seus doutos co-mentores diocesanos... Um feito, sem nódoa (para usar o termo de Santos Narciso), nem escrúpulo, nem motivo de escândalo; historicamente um exemplo edificante para a Igreja que está nos Açores, no País e no Mundo!

Por outro lado, não deixa de ser originalidade, neste quadro litigioso e de um cinismo atroz, saber-se que, no Santuário, quando constava correr uma espécie de “objecção de consciência” em relação à remoção física do Resplendor da Imagem (o que acentuaria simbolicamente as divergências existentes entre o Bispo e o Padre Duarte Melo, e a Irmandade, o Reitor do Santuário e as Religiosas...), vir agora um arauto diocesano frisar ter contado a dita operação transitária, fiscalizada em pessoa pelo Senhor D. António, com “a boa colaboração das irmãs que zelam pelo Tesouro”...

4. Só uma corajosa e bem formada inteligência da fé e uma proporcional consciência real destas realidades poderiam ter fornecido a todos, sem rodeios e falácias de argumentário indigente e servil, a devida percepção da estrutura global dos sistemas de signos e objectos, das suas lógicas e mais-valias, de uma ética da mostração diferencial das suas múltiplas categorias de significação, e da dialéctica das apropriações e legitimações que neste campo de bens materiais e simbólicos, móveis e imóveis, sempre se articulam e amiúde digladiam!

– E é assim que vale ainda hoje a pena recapitular que a Imagem do Senhor Santo Cristo e os seus pertences patrimoniais identitários e sacralmente activos (v.g. o Resplendor) constituem um todo objectual unitário, que a Igreja, analogamente a outra instituições, para já nem falar no senso comum dos seus fiéis, tem “obrigação de respeitar”, com “zelo”, seguindo as directrizes da Santa Sé e da Conferência Episcopal Portuguesa quando ensinam e determinam nos Princípios e Orientações relativos à tipologia e finalidade deste género de bens, que a sua manipulação tem de olhar “à intenção do doador, de modo particular quando este tiver sido a comunidade crente”, para salvaguarda do “carácter sagrado” dos objectos religiosamente queridos e piedosamente venerados, “bem como o afecto que tem pelo valor em causa a comunidade que o utiliza e é sua proprietária”, cabendo ao Bispo “ajuizar das decisões que [os] afectem particularmente (...), sobretudo quando esteja em causa o seu valor material ou artístico, a sua natureza religiosa ou o apreço que a comunidade tem por ele”, respeitando-se ainda, para “usos em fins secundários, como exposições, (...) a maior sacralidade de alguns [desses objectos de culto ou sagrados], nomeadamente (...) imagens de grande devoção”, como é o caso do Senhor Santo Cristo, evidentemente!


 Ora a este respeito creio que nada mais será preciso acrescentar hoje, embora deva relembrar, entre outros episódios historicamente tristes e didácticos, aquele que se passou nos Açores com as Irmandades do Espírito Santo (na década de 50 do século passado), salvaguardas as diferenças que a todos deveriam fazer pensar nas semelhanças, para obviar mimeses e sequelas análogas nestas presumidas “modernidades” eclesiásticas e “dadas às artes” (e a algumas artimanhas), impantes e laicistas nos seus cosmopolitismos turisteiros (ou apenas voyeuristas) – quando não encarreirados nas academias e nas administrações públicas e estatais –, para dessacralização gratuita e primária de certos símbolos (ditos “retrógrados” ou “arcaicos”), porém apenas para (re)investimentos duvidosos, fúteis ou sinistramente iconoclastas noutros signos, mitologias e processos mais ou menos (in)conscientes e inconsistentes de substituição ou transferência “progressista”, “esclarecida” ou até – imagine-se – insensata e confusamente ditos sociopolítica, estética e secularmente “libertadores”!

5. Neste momento este assunto ganhou contornos universais ainda mais complexos, que aqui ficam apenas sinalizados, e sobre os quais certamente muito se debaterá depois, para além das apaixonantes questões da Arte Sacra, da Museologia Religiosa e Eclesiástica, do estatuto dos Sacramentais (e talvez até, em decorrência, dos próprios Sacramentos...), para além das implicações pastorais, da teologia dos objectos de culto, da teologia icónica e das imagens, e da ética da conservação e da exposição, sem esquecer que tudo isso deve ser pensado e repensado no contexto sociocultural, devocional e católico dos Açores em geral e de S. Miguel em particular, numa (una?) Diocese.


– Também por isso é que esta procissão diocesana, entre agnosias de bradar aos céus, talvez ainda vá no adro, até porque não consta que anéis, báculos e mitras, estatuárias de beija-pé, objectos benzidos ou alfaias bentas, custódias, cálices, píxedes, etc., etc., possam ser todos colocados no mesmo nivelado museu das religiões... Ou então será que poderão, a curto prazo, também vir a ficar ao lado do Resplendor, sem vínculo de devoção, estrutura interna e integrada de representação, em indiferenciada e profana museologia, irrecuperavelmente dessacralizados numa montra iconoclasta perante a qual ninguém reza nem ajoelha, em piedosa devoção, crença e fé, Razão e Coração?
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Em "Diário Insular" (Angra do Heroísmo, 15.06.2014):


sábado, junho 14, 2014



As Agnosias Diocesanas

1. Conforme pude escrever há uma semana, na altura em que comecei a perspectivar este texto aguardava-se ainda o regresso a S. Miguel do Bispo D. António, sendo que o Prelado açoriano iria então reunir, como de facto o fez, com entidades mais directamente ligadas ao Santuário da Esperança, no expectável (mas todavia depois gorado!) sentido de procurar-se um consenso pacífico que pudesse, com uma desejável e prudente revogação da primeira decisão diocesana, impedir que o tão contestado projecto da retirada e “empréstimo” temporário do Resplendor da Imagem do Senhor Santo Cristo fosse por diante, desse modo evitando-se a deslocação do mesmo para uma controvertida Exposição em Lisboa. Porém, quando ia ultimando esta Crónica, soube-se que o Resplendor, sintomaticamente tinha já seguido de avião (http://www.diocesedeangra.pt/noticia_2166), bastante à socapa,  encontrando-se depositado no Museu de Arte Antiga, até vir a ser “estudado”, técnico-cientificamente dissecado e “exposto” numa mostra cuja data não está definida...



 – Não resta pois dúvida que tudo se consumou (por certo com intermediários governamentais regionais nunca assumidos...) com esse grande testemunho de expedita capacidade para híbridas acções: ademanes de arte fosca e tosca, artimanhas palacianas e volteios de saia eclesiástica, com inspiração sacro-securitária e sabedoria ratoneira; brilhante pérola de zelo artístico-pastoral, compreensão sociocultural e museológica da fé, sem quaisquer rebuços, tibiezas devocionais ou cedências às vozes do “retrógrado”, “anacrónico” “fundamentalista” e “fanático” Povo de Deus crente, carne para toda a obra mas adorador de “imagens de pau” (na recente e ácida oratória pseudo-esclarecida de alguns neo-conversos à nossa insular tardo-modernidade castrense, – pobres e cegos néscios na atrevida ignorância das mediações sociológicas do Sagrado e das antropologias fenomenológicas da Teologia e da Fé do Cristianismo!




E digo isto porque quem sabe se no mais humilde devoto (“retrógrado”, “primitivo” e “simplório”, não é?) não estará afinal mais autenticidade e mais esperança do que em muita corja clerical-mundana, anómala e hipocritamente apenas clericalizada para o que lhe dá jeito e sustento!? E depois, entre os olhares e os gestos dos peregrinos açorianos, os dos turistas “en bavardage” (curiosos mais ou menos basbaques, fúteis voyeurs) e os supostos “especialistas” em arte “sacra”, “liturgia” e quejandos, certamente o que a Igreja deveria era optar sempre pelos primeiros, respeitando-os com sentido evangélico, paciência histórica e memorial sentido profundo da Tradição e da piedade das gerações anteriores, porquanto foi com elas e com aqueles que rezou e viu e sentiu a vida nas horas amargas da aflição e dos pedidos de perdão, com mútuo arrependimento fundo! 

– Sim, porque esses, ao menos esses, talvez pequeninos (e tão explorados e espoliados de tudo, como historicamente sempre foram!) não são peças artístico-museológicas facilmente descartáveis, profanáveis e tornadas insignificantes, a não ser, numa sociedade pagã ou sistemicamente descristianizada, por uma instituição degradada e degenerada que, como escrevia D. Albino Cleto, servisse já somente para “promotora de museus”, conservando ainda “o património que herdou” mas para “encerrá-lo num museu”, naquilo que seria tanto “um crime contra a sociedade” (se o deixasse destruir) quanto “um pecado contra a sua própria vocação” (se o encerrasse, despido, sem missão nem carisma vivos, pragmática e “culturalmente” travestidos num local de exibição museal)...


2. Indiscutivelmente, assim, estamos agora perante um insólito e espantoso marco ético-episcopal, “de valor patrimonial, cultural e histórico que importa partilhar com toda a comunidade humana” (sic), no escandaloso e distorcido arrazoado mediático desta Diocese e para perpétua memória da sua actual cartilha de evangelização regional autónoma, no entendimento prudentíssimo e consciencioso do seu iluminado e ilustrado Prelado, da sua clerezia conselheiral e dos seus doutos co-mentores... Um feito notável, sem mácula nem nódoa (para usar o doloroso termo de Santos Narciso), nem escrúpulo, nem motivo de escândalo, de facto! Historicamente, portanto, um exemplo edificante para a Igreja que está nos Açores, no País e no Mundo...

– Por outro lado, não deixa de ser originalidade beatífica, neste cenáculo litigioso e de um cinismo atroz, propagandear-se que, no Santuário, quando constava que ia correr uma “objecção de consciência” em relação à remoção física do Resplendor da venerada Imagem (o que acentuaria simbolicamente as apregoadas divergências), vir agora uma arenga de comunicação social diocesana frisar ter contado a dita operação transitária, tutelarmente fiscalizada pelo Senhor Bispo em pessoa, com “a boa colaboração das irmãs que zelam pelo Tesouro” (sic)!


Ora neste momento, com tudo isto, ganhou este assunto contornos universais – que a mim me interessam sobremaneira e são ainda mais complexos (pelo que aqui ficam apenas sinalizados e sobre os quais certamente muito se debaterá depois com as apaixonantes questões permanentes da Arte Sacra, da Museologia Religiosa e Eclesiástica, do estatuto dos Sacramentais – e talvez até, em decorrência, dos próprios Sacramentos –, para além das pressuposições pastorais, da teologia dos objectos de culto, da teologia icónica e das imagens, e da ética da conservação e da exposição, etc., etc.) –, mas sem esquecer que tudo isso há-de ser pensado e repensado no contexto sociocultural, devocional e católico dos Açores em geral e de S. Miguel em particular, numa (una e única?) Diocese...

– Mas também, sem sombra de dúvida nem brilho de metais preciosos e incalculáveis, antes por isso mesmo, é que esta procissão diocesana, entre agnosias de bradar aos céus, talvez ainda vá no adro, até porque não consta que anéis, báculos, mitras, estatuárias de beija-pé, objectos benzidos ou alfaias bentas, custódias, cálices e píxedes, etc., etc., possam ser todos colocados no mesmo nivelado museu das religiões... Ou então, será que poderão identicamente (quem o afiançará?), a curto prazo, também vir a ficar ao lado do Resplendor, sem vínculo de devoção nem estrutura interna e integrada de representação, em indiferenciada narrativa e museologia profana, irrecuperavelmente dessacralizados numa montra-vitrine iconoclasta, perante a qual ninguém reza nem ajoelha, em piedosa devoção, crença e fé, Razão e Coração?!


3. Finalmente e para fecho deste confrangedor assunto, não podemos deixar de fazer referência aqui à iniciativa (diligentemente fundamentada, em si louvável e perfeitamente compreensível) do deputado Joaquim Machado (PSD-A) ao apresentar na ALRAA um Projecto de Decreto Legislativo Regional – subscrito pelos restantes partidos da Oposição e depois dito como eventualmente também sustentável pelo PS –, visando atribuir à Imagem e ao Tesouro do Senhor Santo Cristo a designação (e decorrente estatuto prático, evidentemente) de “Tesouro Regional”, porquanto os mesmos objectos sacro-religiosos, “propriedade da Diocese de Angra e Ilhas dos Açores”, se revestem “de valor especialmente simbólico para a Região e [tem] inequívoco valor regional”.

– Ora como se nota por este indubitavelmente bem intencionado projecto político-parlamentar, o problema da existência e do destino dos pertences do Senhor Santo Cristo (património e inalienável propriedade da Igreja nas entidades orgânicas do Convento e do Santuário da Esperança) poderá tornar-se, por via de uma sua eventual aprovação simplista, bem mais complexo do que parece, para além de poder ser uma espécie de arma de “dois gumes” que convirá temperar com apurada segurança legislativa e co-responsabilização inter-institucional, porquanto aí poderão estar implicadas matérias que envolvam vertentes jurídico-constitucionais, de Direito Canónico e da própria Concordata (verbi gratia Artigos 23 e 24), – contornos que não escaparão, por certo, às pupilas políticas e aos melhores consultores jurídicos dos deputados da ALRAA, tal como, depois, não deverão por certo escapulir-se ao minucioso escrutínio e qualificadas prerrogativas do Gabinete do Representante da República...


 E isto mesmo – para fechar este assunto –, sem falarmos de questões como as de saber qual o estatuto das futuras esmolas ou dádivas (v.g. jóias ou outros valores que venham a ser oferecidos a Santo Cristo); que implicações (técnicas, financeiras, logísticas, estruturais e físicas...) tal classificação trará aos moldes estruturais de arrumo, guarda, conservação e gestão do Tesouro, e aos meios humanos necessários e habilitados para tal; que (des)obrigações advirão para a antiga e sempre acalentada construção do Museu de Arte Sacra ou Eclesiástica (o que não é a mesma coisa), ligado ao Convento e ao Santuário; que abdicação, cedência ou compartilha de administração tal estatuto poderá implicar, no que se refere nomeadamente aos papeis da Reitoria do Santuário e da Irmandade; que reservas, ou recursos de alçada patrimonial última e sua preponderante ou primacial gestão corrente (museológica, sacra, litúrgica, festiva, etc.) caberão às partes “contratantes” (consultadas já e concordantes ambas?), e doravante “sócias” ou “associadas” em múltiplos cultural business, usufrutos possíveis, proventos monetários advenientes, etc., etc; – enfim, tudo questões que terão, ainda por cima, de ser devidamente equacionadas por relação ao enquadramento legislativo considerado e ali invocado (concretamente, o disposto no nº 2 do artigo 10º do Decreto Legislativo Regional nº 29/2004/A, de 24 de Agosto, alterado e republicado pelo Decreto Legislativo Regional nº 43/2008/A, de 8 de Outubro), e cujos potenciais alcances e constrangimentos, positivos e negativos, a prazo incerto, não poderão ser esquecidos por ninguém com inteligência histórica e prudência jurídico-institucional (quando não com mitra e anel episcopais...) na cabeça e no coração da nossa Diocese e dos nossos Açores!
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Em "Diário dos Açores" (Ponta Delgada, 14.06.2014):


TESOUROS E OBRIGAÇÕES

O deputado Joaquim Machado apresentou um Projecto de Decreto Legislativo visando atribuir a designação de “Tesouro Regional” à Imagem e Tesouro do Senhor Santo Cristo, sendo que tais objectos, “propriedade da Diocese”, se revestem “de valor especialmente simbólico” e “inequívoco valor regional”.

Ora como ressalta desta bem intencionada iniciativa, o problema da existência e destino desse inalienável património da Igreja poderá tornar-se mais complexo por via da eventual aprovação simplista daquele decreto, que assim – arma de “dois gumes”... – convirá temperar com segurança legislativa e co-responsabilização inter-institucional, por quanto ali constará de matéria jurídico-constitucional, de Direito Canónico e da Concordata (vide arts. 23 e 24), que não fugirá por certo aos consultores da ALRAA, tal como não escapará ao minucioso escrutínio e qualificadas prerrogativas do Representante da República.


 E isto sem falarmos de questões como:

– Que estatuto para as futuras esmolas ou dádivas; implicações que tal classificação trará aos moldes estruturais de arrumo, guarda, conservação e exposição do Tesouro, e aos meios humanos necessários e habilitados para tal; que (des)obrigações para o acalentado Museu de Arte Sacra ligado ao Convento/Santuário; que abdicação, cedência ou compartilha de administração tal categoria originaria na Reitoria do Santuário e na Irmandade; que reservas ou recursos de alçada patrimonial última e sua primacial gestão corrente (artístico-museológica, sacra, litúrgica e festiva) caberiam aos “contratantes” (futuros “sócios” ou “associados” em cultural business, usufrutos possíveis, proventos advenientes), etc.!?

Enfim, temas que terão de ser devidamente equacionados face ao enquadramento legislativo invocado (nº 2 do artigo 10º do DLR nº 29/2004/A, de 24 de Agosto, alterado e republicado pelo DLR nº 43/2008/A, de 8 de Outubro), e cujos potenciais alcances e constrangimentos não devem ser esquecidos por ninguém com inteligência histórica e prudência institucional (quando não com mitra e anel...) na cabeça e no coração dos Açores e da nossa Diocese!
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Em RTP-Açores.














Azores Digital:






















e “Diário Insular” (Angra do Heroísmo (14.06.2014):


sábado, junho 07, 2014

A Dessacralização dos Símbolos
e o Resplendor da Imagem Sacra

1. Com crescente impacto socio-religioso, pastoral, eclesial e mediático – muito embora nem sempre abordado do mais exigível, sério, fundamentado e aprofundado modo (quando não até degenerando para terrenos que extravasam a mais essencial e legítima tematização competente) –, o caso da controversa subtracção temporária do Resplendor do Senhor Santo Cristo ao conjunto das peças constituintes da integridade iconicamente sacralizada da Imagem e do respectivo Tesouro, para declarados fins de exposição artístico-museológica em Lisboa), bem que deveria merecer reflexão urgente e comprovadamente necessária na Igreja e em toda a sociedade açoriana...



 – E se dúvidas houvesse sobre as melindrosas e evidentes complexidades (teológico-pastorais, filosóficas, histórico-sociológicas, simbólicas e antropológico-culturais) deste escusado imbróglio; das conflituais reacções que tem provocado; das díspares leituras (nalguns casos despudoradas, levianas ou irresponsáveis) que suscitou, e das significativas lacunas – outrossim desejavelmente integradas, multidisciplinares e sistemáticas – de abordagem e de compreensão verificáveis nesse campo (mas que não foram ainda devidamente accionadas por quem teria esse indeclinável dever de múnus e/ou a correlativa responsabilidade de estudo, saber e conhecimento) –, logo bastaria, para avaliação integral e conscienciosa de tudo isto, auscultar as Redes Sociais, folhear a Imprensa terceirense e micaelense (com destaque para os pertinentes textos de Santos Narciso e Manuel Moniz), ou ter visto e ouvido a Rádio e a Televisão regionais, onde, por entre noticiários pontualmente atentos, entrevistas e reportagens, tiveram lugar alguns elucidativos debates (com realce para os depoimentos comoventes de Carlos Faria e Maia, e para as formulações sociológicas objectivas de Álvaro Borralho, ambas aliás em precisões e registos complementares e só aparentemente opostos...).

Ora – para além do mais que aqui não pode ser teórico-criticamente desenvolvido sobre espaços, tempos e retóricas de Museologia aplicada e de Arte Sacra e Profana –, que dizer de quanto este assunto merece ser levado a sério por tudo o que sintomaticamente revela, ou dissimula, da vida colectiva, dos imaginários espirituais (religiosos e profanos) e da hodierna configuração de valores, pensamentos e atitudes que estruturam mentalidades, práticas e discursos do povo açoriano, das suas supostas (porém decadentemente abúlicas ou medíocres) “elites”, classes e corporações, agentes e actores societários?


2. Conforme sublinhei anteriormente, de entre as várias formas expressivas da religiosidade e da fé religiosa católica nos Açores, o Culto ao Senhor Santo Cristo ocupa lugar único e absolutamente distinto, sendo mesmo que – das diversas devoções que nestas ilhas foram ganhando e perpetuando vigências espirituais, históricas, socioculturais e festivas (populares, eclesialmente integradas ou parcialmente autónomas face à hierarquia institucional da Igreja e ao Poder secular) – as venerações de cariz crístico ou representação cristológica (direccionadas à figura e à figuração iconográfica, pictórica ou escultórica de Jesus Cristo, estão presentes e são praticadas quase em todos os nossos lugares e contextos existenciais insulares e telúricos de crença, inconsciente e memória colectiva, reflectindo também conaturalmente as marcas das sucessivas e hegemónicas modelações tardo-medievais, contra-reformistas e barrocas da Evangelização no Arquipélago (especialmente por via dos Franciscanos e dos Jesuítas, com tudo o que histórico-dogmaticamente os seus carismas, variantes de espiritualidade, doutrina, formatos de prece e corporizações rituais, cultos e liturgia, determinações canónicas, etc., implicaram, a par, não negligenciável, de regimes de imposição dogmático-pastoral e de padronização normativa).


 – E foi deste modo que a proliferação cultual e votiva, reflectida sob arquetípica forma revelacional no Ecce Homo – ou seja, na feição dolorosa, passionária e sofredora de um ícone universal representativo do Homem das Dores – conseguiu, como nenhuma outra devoção portuguesa e açoriana – exceptuando as Festas do Espírito Santo! – grandes, profundas e significativas dimensões, polarizando e acumulando depois no Senhor Santo Cristo, devido à superiormente sustentada e específica acção pessoal, e à posteridade venerante de Madre Teresa da Anunciada, tudo quanto nele permanece perfeitamente identificável e ritualizado de modo ímpar e apelativo, tanto no recesso conventual do Santuário da Esperança como nas tradicionais manifestações festivas públicas, religiosas e profanas, nos Açores e nas Comunidades Açorianas, mas grandiosa e especialmente na ilha de S. Miguel, em sua cíclica honorificação.


3. Na altura em que escrevo esta Crónica, aguarda-se o regresso a S. Miguel do Bispo D. António, que deverá reunir com as entidades mais directamente ligadas ao Santuário da Esperança, no sentido de procurar-se um possível consenso pacífico que possa, com a desejável e prudente revogação da primeira decisão diocesana, impedir que o Resplendor da Imagem seja deslocado para a referida mostra (alegadamente com medidas de segurança asseguradas, conquanto constituindo estas apenas uma das muitas e justificadas razões a ter em conta numa proporcionalmente descontextualizada situação como a da planeada exposição e sua arbitrária narrativa e implantação artístico-museológica profana!).


 – Por outro lado, não deixa de ser originalidade, neste quadro litigioso, saber-se que, no Santuário, se prepara entretanto uma espécie de “objecção de consciência” em relação ao próprio gesto prático-laboral de remoção física do Resplendor da Imagem, o que acentuará simbolicamente as divergências existentes... Seja porém como for que este assunto chegue a uma próxima, já tardia e responsável decisão pastoral, socio-religiosa, canónico-jurídica e teológica, algumas considerações podem ser ainda aqui retomadas, em jeito de reflexão final e síntese do muito que sobre isto se tem dito, sem escamotear o que ainda faltará sublinhar...

4. Só uma corajosa e bem formada inteligência da fé e uma proporcional consciência real destas realidades podiam fornecer a todos, sem rodeios e falácias de argumentário indigente e servil, a devida percepção da estrutura global dos sistemas de signos e objectos, das suas lógicas e mais-valias, de uma ética da mostração diferencial nas suas múltiplas categorias de significação, e da dialéctica das apropriações e legitimações que neste campo de bens materiais e simbólicos, móveis e imóveis, sempre se articulam e amiúde digladiam!

– E é assim que vale pena recapitular já, incisiva e frontalmente, que a Imagem do Senhor Santo Cristo e os seus pertences patrimoniais identitários e sacralmente funcionais (v.g. o Resplendor) constituem um todo objectual unitário, que a Igreja, analogamente a outras instituições, para já nem falar no senso comum dos fiéis, tem “obrigação de respeitar”, com “zelo”, segundo as directrizes estipuladas pela Santa Sé e pela própria Conferência Episcopal Portuguesa quando ensinam e determinam nos Princípios e Orientações relativos à tipologia e finalidade deste género de bens, que a sua manipulação tem de olhar “à intenção do doador, de modo particular quando este tiver sido a comunidade crente”, para salvaguarda do “carácter sagrado” dos objectos religiosamente queridos e piedosamente venerados, “bem como o afecto que tem pelo valor em causa a comunidade que o utiliza e é sua proprietária”, cabendo ao Bispo “ajuizar das decisões que [os] afectem particularmente (...), sobretudo quando esteja em causa o seu valor material ou artístico, a sua natureza religiosa ou o apreço que a comunidade tem por ele”, respeitando-se ainda, para “usos em fins secundários, como exposições, (...) a maior sacralidade de alguns [desses objectos de culto ou sagrados], nomeadamente (...) imagens de grande devoção”, como é o caso do Senhor Santo Cristo, evidentemente!


Ora a este respeito creio que nada mais será preciso acrescentar hoje, embora deva relembrar, entre outros episódios historicamente tristes e didácticos, aquele que se passou nos Açores com as Irmandades do Espírito Santo (na década de 50 do século passado), salvaguardadas as diferenças que a todos deveriam fazer pensar nas semelhanças, para obviar mimeses e sequelas análogas nestas presumidas “modernidades” eclesiásticas e “dadas às artes” (e a algumas artimanhas), impantes e laicistas nos seus cosmopolitismos turisteiros (ou apenas voyeuristas) – quando não encarreirados nas academias e nas administrações públicas e estatais –, para dessacralização gratuita e primária de certos símbolos (ditos “retrógrados” ou “arcaicos”), porém apenas para (re)investimentos duvidosos, fúteis ou sinistramente iconoclastas noutros signos, mitologias e processos mais ou menos (in)conscientes e inconsistentes de substituição ou transferência “progressista”, “esclarecida” ou até – imagine-se – insensata e confusamente ditos sociopolítica, estética e secularmente “libertadores”!

* Fotos de José António Rodrigues/Latras Lavadas/Publiçor (2013).
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Em Azores Digital:






















e Jornal "Diário dos Açores"
(Ponta Delgada, 07.06.2014):
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Outra Versão do Texto:
Dessacralização de Símbolos

Nem sempre abordado do mais exigível, fundamentado e aprofundado modo (quando não até degenerando para terrenos que extravasam essencial e legítima tematização) –, a conflitual subtracção temporária do Resplendor do Senhor Santo Cristo ao conjunto constituinte da integridade iconicamente sacralizada da sua Imagem, para fins de exposição artístico-museológica, bem que merece reflexão urgente e necessária na Igreja e em toda a sociedade açoriana...

Ora para além do mais que aqui não pode ser teórico-criticamente desenvolvido sobre espaços, tempos e retóricas de Museologia aplicada e de Arte Sacra e Profana, que mais dizer de um assunto que deve ser levado a sério por tudo o que revela, ou dissimula, da vida colectiva, dos imaginários espirituais (religiosos e profanos) e da hodierna configuração de valores, pensamentos e atitudes que estruturam mentalidades, práticas e discursos do povo açoriano, das suas supostas (decadentemente abúlicas ou medíocres) “elites”, classes e corporações, agentes e actores societários?

– Pois vale ao menos recapitular já que aquela Imagem, com os seus pertences patrimoniais identitários e sacralmente funcionais, constitui um todo objectual unitário, que a Igreja, analogamente a outras instituições, para já nem falar no senso comum dos fiéis, tem “obrigação de respeitar”, com “zelo”, seguindo as directrizes da Santa Sé e da CEP quando ensinam e determinam, relativamente à tipologia e finalidade desse género de bens, que a sua manipulação tem de olhar “à intenção do doador, de modo particular quando este tiver sido a comunidade crente”, para reserva do seu “carácter sagrado”, religiosamente querido e piedosamente venerado, “bem como o afecto que tem pelo valor em causa a comunidade que o utiliza e é sua proprietária”, cabendo ao Bispo “ajuizar das decisões que [o] afectem (...), sobretudo quando esteja em causa o seu valor material ou artístico, a sua natureza religiosa ou o apreço que a comunidade tem por ele”, respeitando-se enfim e só assim para “usos em fins secundários, como exposições, (...) a maior sacralidade de alguns, nomeadamente (...) imagens de grande devoção”, como é o caso, evidentemente!
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Em "Diário Insular"
(Angra do Heroísmo, 07.06.2014):


























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